O Budô Para Além Das Barreiras Culturais
Em França, existe um número considerável de pessoas interessadas nas artes marciais, nomeadamente no budô japonês. No entanto, a prática do budô não está suficientemente difundida pois está à margem do desporto em que predomina a competição.
Mais curioso ainda, o budô não parece constituir um objecto de estudo sério, seja ao nível da investigação, do ensino universitário ou mesmo no quadro da Sociedade Francesa de Estudos Japoneses. Contudo, se tentarmos aprofundar o conhecimento da cultura tradicional japonesa, não me parece fazer sentido por de lado o budô e o estudo da tradição guerreira. De facto, os guerreiros influenciaram desde muito cedo a história do Japão e governaram a sociedade japonesa durante 7 séculos, até à Restauração Meiji, que aconteceu há pouco mais de um século. A cultura dos guerreiros teve então um papel sociocultural importante, que se prolongou mesmo depois do fim do seu domínio político. A cultura dos guerreiros manifesta-se hoje em dia no budô e, de uma forma ainda mais profunda, no comportamento dos japoneses.
Não direi, como alguns, que o crescimento económico japonês depois da Segunda Guerra Mundial se deve à aplicação do comportamento guerreiro na área económica pois a realidade parece-me ser muito mais complexa. No entanto, não creio que seja incorrecto dizer que a tradição guerreira continua profundamente presente nos modelos de conduta dos japoneses.
O período feudal deixou-nos um grande número de obras literárias e artísticas, e surge em muitas obras culturais modernas. Tendo isto em conta, como é que poderíamos abordar a cultura tradicional japonesa sem fazer caso dos elementos guerreiros?
O nô (teatro musical), o chadô (cerimónia do chá), o haiku (poesia), o bunraku (teatro de marionetas), o kabuki (teatro dança)... foram desenvolvidos numa sociedade dominada pelo sabre. Isto implica uma concepção da vida e da morte diferente da que temos actualmente. A sensibilidade destas obras culturais foi modelada por aqueles que viviam na época em que o sabre desempenhava um papel concreto.
Em França, os estudos aprofundados sobre a cultura japonesa parecem limitar-se ao campo literário e artístico, não tendo em conta as concepções do corpo e da morte que, no entanto, eram fundamentais para todos na sociedade tradicional.
O facto de o budô estar excluído da reflexão intelectual deve-se provavelmente à tendência cultural francesa em que o modelo intelectual tende a excluir os problemas colocados pelo corpo. Não voltarei a referir aqui esta questão já conhecida. Só que esta situação parece-me lamentável e espero que o budô consiga uma posição digna e justa nos estudos franceses sobre a cultura japonesa. Para isso, é indispensável que os praticantes franceses do budô tenham um papel activo na sua transformação numa prática cultural de pleno direito. Mas o que é o budô?
Mencionei o budô, mas de que se trata? Contrariamente à imagem que lhe é associada, o budô não é uma retoma directa da prática guerreira das artes marciais. Trata-se de uma concepção moderna que tem por objectivo uma formação global do ser humano, intelectual e física, através das disciplinas tradicionais de combate. O “budô” é um termo geral que engloba todas estas disciplinas.
No Japão, quando se fala sobre o espírito da prática do kendô, do judô ou do karatê, utiliza-se muitas vezes a expressão “enquanto”. Por exemplo, o kendô “enquanto” desporto de competição ou o kendô “enquanto” budô.
O budô evoca uma imagem de seriedade, de severidade, de ritual, de respeito pelos mais velhos e pelo mestre, de meditação silenciosa... Com estas imagens, o budô transmite a ideia de uma prática conservadora e de uma atitude austera. O dojo evoca a imagem serena de um espaço escuro, com pavimento plano de madeira, por oposição à imagem do desporto sob a luz brilhante de um ginásio ou de um espaço ao ar livre. De facto, quando se fala de desporto, a imagem é mais aberta e de certa forma com mais luz solar. No Japão, quando falamos de budô a propósito do karatê, tanto nos referimos a uma prática dura na qual não evitamos os combates de “K.O.” como a uma prática austera que se afasta da ideia de competição. Algumas pessoas associam a isso um treino ascético na montanha. A oposição à violência é uma das suas características.
Noutras disciplinas, como o tiro com arco, insiste-se de tal forma no aspecto espiritual e na harmonia na prática cerimonial que a ideia de combate não está incluída.
No Japão, existe por isso uma tendência para definir o budô pelo seu aspecto de austeridade e dureza. Mas trata-se de uma definição mais emocional do que teórica que não nos pode levar longe. No que se refere à severidade e à dureza dos riscos na prática, existem no desporto disciplinas em que o risco é muito maior, levado ao extremo no alpinismo ou nas corridas de barco à vela. O que é então o budô?
A noção de dô
Não faz sentido definir o budô pelos seus traços de austeridade e de severidade, ou pela espiritualidade do ascetismo. Budô significa literalmente a via marcial. É necessário reflectir sobre a prática técnica das artes marciais (bu) em associação com a noção de via (dô).
No Japão actual, a modernidade é fortemente valorizada e alguns jovens têm uma reacção quase alérgica assim que se fala de dô. Eu penso que a via não é arcaísmo nem misticismo. É a duração da vida, desde o nascimento até à morte, que constitui a via. Ela é feita de altos e baixos. Cada um percorre esta via, mas ela não se impõe à consciência e é fácil dispersarmo-nos no tempo que passa. A partir do momento em que se fala de via, existe uma direcção ou um objectivo.
Quando, neste lapso de tempo da vida, se associa à prática das artes marciais uma pressão para o auto-aperfeiçoamento, ou seja, para o aperfeiçoamento da pessoa na sua totalidade, nasce a ideia de budô. A ideia do auto-aperfeiçoamento está presente em todas as culturas.
Contudo, o que isso significa para os japoneses parece-me ser muito diferente do seu significado para os europeus. No entanto, escondida por trás da ideia de progressão, a diferença não aparece numa primeira abordagem. Se um ocidental quer praticar o budô na sua plenitude, um dos problemas mais importantes parece-me ser o de pôr em prática a concepção da via (dô).
É evidente que a questão do budô não se põe nos mesmos termos para os japoneses e para os ocidentais. A compreensão mútua deve ultrapassar um determinado número de problemas que vou tentar especificar.
A transmissão do budô pelos japoneses
Comecemos pelas dificuldades ou pelos problemas com que são confrontados os mestres japoneses que procuram transmitir o budô a estrangeiros que querem construir a sua prática do budô.
Quais são os problemas explícitos e implícitos com que são confrontados estes mestres japoneses de budô?
Para os mestres japoneses, uma das dificuldades mais importantes é a comunicação das técnicas corporais do budô associadas aos aspectos espirituais. Isto porque se querem ser realmente compreendidos têm de relativizar um pouco a sua concepção da vida, o que os leva a pôr de certa forma em causa a sua própria concepção do mundo. Isso não é uma coisa fácil.
Para avançar na prática do budô, cada um sabe que é preciso concentração, vontade, convicção, e até mesmo um espírito perseverante... por forma a conseguir persistir durante anos de treino. Na sua maior parte, os mestres vão buscar a energia necessária para alimentar a prática do budô à sensação de uma procura da perfeição. Só que esta sensação, mesmo quando não é totalmente consciente, tem origem numa abordagem cujo objectivo é aproximar-se do estado de perfeição representado pelo sincretismo da imagem de Buda e dos deuses xintoístas, valor profundamente presente na sociedade japonesa. Ela implica uma intuição que funde o mundo humano e o universo cósmico. É por isso que os japoneses têm tendência a considerá-la como um valor universal e a pressupor que está presente naqueles a quem se dirigem, mesmo pertencendo a uma outra cultura. Esse é o problema.
Esta tendência para o universalismo pode exprimir-se pela generosidade numa situação confortável, mas é preciso assinalar que era uma das justificações da ideologia de dominação do mundo durante a Segunda Guerra Mundial. Não foi por acaso que, durante as guerras, o budô foi facilmente confundido com um nacionalismo que excluía de facto qualquer valor de vida que não o do Japão Imperial.
A constância e a tensão do esforço exigido pelo budô tendem a reforçar a visão da universalidade do valor da vida que está contida na via pois ter várias visões pode levar ao “mayoi” (a perda de direcção a seguir). O budô cria a força de atingir directamente o objectivo, mesmo se por vezes em detrimento do pensamento crítico.
Contudo, a possibilidade de praticar o budô tendo por objectivo a formação do homem, com uma difusão das suas disciplinas à escala planetária, é um tema de discussão actual no Japão. Na minha opinião, isso só faz sentido se encontrarmos uma outra forma de captar o essencial do budô, libertando-o da cosmogonia japonesa. É essa dimensão do budô japonês que me dedico a definir. Só ela permitiria comunicar na cultura ocidental o que constitui o essencial do budô.
Indo mais longe, acho que não há um budô único, mas sim várias possibilidades na sua prática e apreciação. Neste caso, diria mesmo que a maior parte dos mestres japoneses, sobretudo os de mais idade, têm pouca consciência da pluralidade das visões da vida com as quais o budô se vê confrontado actualmente. Isto principalmente devido à sua educação e também às barreiras linguísticas e à falta de experiência de comunicação com os estrangeiros...
É preciso reconhecer que poucos mestres estão dispostos a compreender outros sistemas de pensamento que não os dos japoneses, sobretudo no que se refere à prática do budô. Para a maior parte dos mestres de mais idade, o budô é único e, consequentemente, a comunicação do budô só pode ser unilateral: do mestre para os alunos e dos japoneses para os estrangeiros. É impensável para eles que o conceito de budô seja reexaminado e possa ser modificado ou precisado pelo contacto cultural com estrangeiros.
No entanto, acho que este é o momento de reexaminar e precisar o conceito de budo pois a sua prática tornou-se actualmente um fenómeno planetário e esta situação parece-me consolidar-se.
Os mestres japoneses são geralmente muito generosos relativamente aos estrangeiros na medida em que o seu ponto de vista não é posto em causa. Penso que isso resulta principalmente da ilusão de compreensão causada pela insuficiência da comunicação linguística.
Assim que a mesma se dissipa e que surge o mal-entendido, eles podem parecer egocêntricos, incompreensíveis, herméticos aos seus alunos europeus. Creio que alguns praticantes tiveram este tipo de experiência.
Achei que devia indicar estes aspectos positivos e negativos pois parecem-me reflectir os problemas fundamentais que devemos ultrapassar para chegar ao budô do futuro.
Mas se os mestres japoneses não conseguem conduzir ou comunicar correctamente o budô ao exterior, o budô fora do Japão arrisca-se a ficar irreconhecível, perdendo aquilo que lhe dá a sua qualidade específica.
Sobretudo para o kendô, a responsabilidade dos mestres japoneses é muito maior pois os mestres de alto nível no Japão são muito mais numerosos do que noutros países. A sua responsabilidade é múltipla e maior pois, na minha opinião, é a única disciplina do budô actual onde está preservada a ideia do budô no seu sentido pleno através da prática do combate.
Enquanto que as outras disciplinas do budô são algumas delas confundidas com os desportos de combate e outras se limitam à prática quase exclusiva dos kata, o que dá, mesmo que erradamente, a impressão de práticas folclóricas. É necessário reconhecer também que actualmente o valor do kendô está ameaçado, ao ponto de fragilizar as suas bases.
Neste caso, a responsabilidade dos mestres e dos praticantes japoneses consiste, em primeiro lugar, em preservar e desenvolver o património cultural, o kendô e o budô; em segundo lugar, em comunicá-lo e transmiti-lo aos outros. Para isso, é necessário ter uma visão ampla do mundo do budô por forma a analisar e compreender a situação actual do Japão e dos outros países, e a elaborar uma teoria e um método de comunicação do budô que possa responder-lhe de forma plena.
Por estas razões, creio que é necessária uma evolução e uma progressão dos mestres e dos investigadores japoneses, e que esta é decisiva para o futuro do budô.
O problema do budô para os praticantes estrangeiros
Agora vamos abordar alguns problemas com os quais podem ser confrontados os praticantes estrangeiros, em particular os ocidentais.
A via (dô) para os japoneses diz respeito a toda a duração da vida. A noção do budô implica uma pressão para o auto-aperfeiçoamento, ou seja, o aperfeiçoamento da pessoa na sua totalidade através da prática marcial. Esta expressão é compreensível para os ocidentais, mas eles não lhe dão o mesmo sentido que os japoneses.
Já vimos que a forma de elevar a qualidade humana pela prática do budô tem origem na concepção budista e xintoísta. Os seres humanos podem atingir o estado de Buda, um estado divino, e podem confundir-se com um deus de um santuário. Podemos referir, por exemplo, o santuário Hayashizaki Jinja onde o fundador da escola de Iai, Hayashizaki Jinsuke Shigenobu, é venerado como deus de iai. Há um grande número de santuários que veneram uma pessoa como deus. Esta forma de pensar pressupõe que um homem pode, através dos seus esforços, atingir um estado de perfeição na sua existência.
Aumentando o seu valor humano, cada um de nós pode mudar a qualidade do seu ser, atingir um valor que se confunde com uma forma de absoluto. A diferença relativamente à cultura cristã, em que a distância entre o Homem e Deus é inultrapassável, é evidente.
O discurso filosófico e ético das artes marciais japonesas ou do budô baseiam-se fundamentalmente na concepção budista e xintoísta do mundo e do universo na qual não existe absoluto pois nada existe sem ser relativo aos outros. O universo não se baseia no conceito do Deus absoluto. Conheço alguns mestres japoneses de artes marciais que são cristãos. Apesar de a sua fé ser cristã, isso não os impede de serem sensíveis à energia universal à maneira xintoísta e budista.
Baseada nesta concepção do mundo e nesta forma de sensibilidade, a ideia da auto-formação é central no budô. Desenvolvê-la na perspectiva de outras culturas seria de uma certa forma prolongar a generosidade da lógica do budismo, criar uma obra apagando-se a si mesmo. Neste âmbito, pressupõe-se que cada ser humano pode aspirar à, e atingir a perfeição seguindo a via.
Alguns investigadores ocidentais definem o budô destacando aspectos comuns a disciplinas das artes marciais de origens diversas.
Desta forma, a prática do budô leva os praticantes ocidentais, tal como os mestres japoneses, a uma certa forma de pôr em causa a sua forma de ser. Para os ocidentais, não se trata de tornarem-se japoneses. Alguns europeus parecem viver de uma forma mais japonesa do que os japoneses. Penso que não é preciso perder ou tornar assim a sua identidade ambígua; pelo contrário, é necessário reforçar a sua própria identidade vivendo intensamente, aqui e agora, em cada momento.
Aceder à realização do budô concebido de uma forma planetária levanta, deste ponto de vista, uma problemática da diferenciação. Penso que esta é a dificuldade fundamental para os praticantes do budô.
Uma chave para o budô
A forma de pensar da via aparece espontaneamente quando a pressão para a auto-formação se associa à prática da arte marcial, à progressão no decurso do tempo. Dito de outra forma, enquanto esta pressão não surgir, uma prática não pode incluir a forma de pensar da via e, consequentemente, ela não se transforma em budô. No sentido rigoroso do termo, o budô não designa disciplinas específicas mas sim a qualidade e o conteúdo prático de uma disciplina. Por isso, não é por praticar a sério o kendô, o karatedô, o jodô, o kyudô... que se pratica o budô. É quando a prática inclui espontaneamente a pressão para auto-formação da pessoa na sua totalidade, a da via, que a prática de cada um se transforma em budô.
O budô não constitui por isso um género entre as disciplinas de combate, mas sim a forma como cada um se dedica a uma disciplina da arte do combate procurando a eficácia.
A pressão para a auto-formação, no sentido que apresentei acima, não surge de uma forma abstracta, apoiando-se antes numa sensação corporal concreta. Trata-se de uma sensação corporal que todos os seres humanos podem conceber independentemente da sua origem cultural. Dito de outra forma, esta sensação corporal é a chave que permite praticar o budô na sua plenitude, ultrapassando as barreiras culturais.
Em que consiste esta sensação corporal?
Em japonês, ela exprime-se através da noção do “ki”. Penso que a sensação corporal do “ki” está normalmente presente na experiência humana. Mas a forma de interpretação desta sensação varia de acordo com a cultura. Por exemplo, o aspecto lógico está muito mais desenvolvido nas línguas ocidentais do que na língua japonesa. Mas não existe nas línguas ocidentais, e é uma dificuldade importante das traduções, uma palavra equivalente a “ki”.
Este termo inclui em japonês as sensações e as impressões misteriosas, vagas, intangíveis que tocam em algo no mais profundo do nosso ser, que está relacionado com uma intensidade provavelmente arcaica ou reprimida. Este conjunto de impressões dificilmente definíveis por uma palavra está presente na experiência quotidiana, na literatura e nas artes japonesas; quando temos de a nomear, dizemos o “ki”. A exclusão destas sensações e impressões da superfície dos vocábulos parece-me correlativa do desenvolvimento do carácter lógico das línguas ocidentais. O pensamento racional desenvolveu-se provavelmente através do recalcamento desta sensibilidade.
É por isso que, na prática, a sensação do “ki” deve ser captada como “ki” sem passar por um sistema de tradução com palavras equivalentes. Penso que para ter a chave do budô ultrapassando os obstáculos culturais, é necessário cultivar a intensidade da sensação do ki e guiarmo-nos em extensão e profundidade por esta sensação, por meio das técnicas corporais do combate.
No kendô, o praticante aprende desde o início o que é o “ki” de uma forma simples, através da expressão “kikentai”. Ao longo dos anos, aprende a importância do “sémé” para o combate. Não podemos descrever de uma forma simples o que é o “sémé”. Mas é claro que o nível do praticante se reflecte directamente na qualidade do “sémé”. Geralmente, o “sémé” implica atitudes ou gestos que comunicam a combatividade do praticante face ao adversário. O “sémé” é muito mais do que as fintas que são utilizadas no combate de karatê. Mesmo fazendo fintas, se estes gestos não conseguirem fazer com que o adversário reaja, não constituem o “sémé”. Pelo contrário, trata-se do “sémé” quando o gesto, por mais pequeno que seja, consegue perturbar o espírito do adversário e, num nível mais avançado, quando se consegue alterar o espírito do adversário sem fazer um sinal explícito. Quando se consegue perturbar o adversário através do “ki” que emana de nós, sem um gesto aparente, trata-se do “kisémé”.
É por isso que não é exacto definir o “sémé” pela descrição dos movimentos. O gesto do “sémé” é aquele que comunica alguma coisa essencial. Se esta coisa essencial não é comunicada, nenhum gesto pode constituir o “sémé”. Dito de outra forma, se esta coisa é comunicada sem um gesto aparente, esta transmissão constitui o “sémé”. Esta coisa essencial é o “ki”.
Durante os combates de kendô que vão acontecer a partir desta tarde, os praticantes das artes marciais que não o kendô devem concentrar a sua atenção na forma como os combatentes cruzam os seus shinai. Verão que, quando as pontas se cruzam, fazem movimentos subtis, ora de forma calma, ora de forma ligeira e rápida.
Trata-se do combate das pontas, o combate implícito em que os praticantes lutam para ocupar a linha central do adversário, a sua linha vital; para impor a sua iniciativa de ataque, para criar uma ocasião em que o seu golpe pode ter sucesso sem falta. O combate mais importante tem lugar nesta troca aparentemente pouco dinâmica.
É o sentido do célebre ensinamento: “Não ganhes depois de teres desferido o golpe, desfere o golpe depois de teres ganhado.”
“Depois de teres ganhado” significa precisamente depois de ter ganhado em combate de pontas e de “sémé”.
No momento em que os dois adversários se enfrentam, começa a interferência do “ki”. Os gestos do “sémé” são uma forma de projectar o “ki” sobre o adversário. Se o acto do “sémé” tem influência sobre a atitude do adversário, é porque este acto toca e altera a percepção principal do adversário. Eu diria a interferência dos “ki”. É por isso que podemos dizer que, mesmo numa etapa em que fazemos o sémé sem ter consciência do “ki”, o essencial do “sémé” consiste no “ki”.
Creio que este nível de combate é desconhecido em muitas disciplinas (o judô, o karatê, o boxe,...), nas quais a consciência dos praticantes está limitada aos elementos mais directamente perceptíveis: a velocidade, a força, a agressividade... Trata-se de uma percepção muito difícil de estabilizar num combate de percussão como o karatê.
Pessoalmente, a minha preocupação principal é pôr em evidência e aplicar esta forma do combate na prática do karatê.
É por isso no kendô que podemos constatar, da forma mais concreta, o papel do que chamamos de “ki”. Sobre este aspecto, o kendô é uma disciplina privilegiada.
Contudo, não se trata de fazer um elogio incondicional do kendô. Pois, antigamente, o kendô parece ter incluído técnicas corporais muito mais ricas com um registo técnico mais amplo. Relativamente à sua tradição, o modelo do kendô actual parece-me ser incompleto, sobretudo no que diz respeito à formação geral do corpo e às regras do combate. Creio que estes são aspectos aos quais os praticantes contemporâneos têm de ser sensíveis caso aprofundem o valor do kendô “enquanto budô”.
Em qualquer caso, podemos dizer que é no momento em que o praticante começa a sentir profundamente o papel do “ki” que a sua prática do combate tende a constituir-se numa via e que surge uma verdadeira consciência do budô.
Porquê?
Sentir profundamente o papel do “ki” implica que um praticante combata procurando “desferir o golpe depois de ter ganhado”. Não se trata de procurar vencer desferindo um golpe a todo o custo, mas sim de desferir o golpe com uma certeza. Trata-se então de construir um combate no qual a certeza da sensação é confirmada por um golpe seguro. Quando atinge este nível, o praticante dá uma grande importância à base do combate, ou seja, ao combate do “ki”, aquele que se desenrola antes da troca concreta dos golpes.
Se, através do sémé ou pela ofensiva do “ki” do adversário, se ficar perturbado e se delinear um movimento de defesa no vazio, isso significa que se agiu explicitamente contra o que é implícito. Dessa forma, comete-se um erro no discernimento da realidade. Se nos dermos conta disso instantaneamente, sentiremos em nós mesmos uma dissociação, pois o espírito não pode deter o corpo no seu gesto errado. Se delinearmos um gesto inútil, é porque o adversário conseguiu fazer-nos mexer contra a nossa vontade. Perde-se então nesse instante preciso a possibilidade de tomar a iniciativa, perdendo por isso antes de receber o seu golpe.
Quando a percepção está aberta à interferência dos “ki”, perder desta forma é tão importante como receber um golpe concreto. O problema torna-se então: como distinguir o verdadeiro do falso, como continuar imperturbável contra a ofensiva do adversário através do gesto ou do “ki”.
Quando se procura uma oportunidade para atacar o adversário, utiliza-se o sémé para ganhar o combate das pontas de forma a que o adversário desvie a ponta do sabre da sua linha central, da sua linha vital. O adversário que oferece uma abertura sem querer fica vulnerável. Nesse instante, desfere-se-lhe um golpe e é uma vitória incontestável.
Ao tocar por acaso, não ficaremos satisfeitos se o adversário ficar imperturbável apesar do nosso golpe. Pensaremos então: desferi um golpe mas o mesmo não conseguiu perturbar o seu espírito. O problema será então: como alterar o espírito do outro através do nosso próprio “ki”?
Desta forma, o objectivo de um praticante passa progressivamente de uma preocupação de técnica gestual simples para um estado de espírito. Permanecer imperceptível perante os sémé e distinguir o falso do verdadeiro nos actos do outro significa adquirir uma perspicácia sustentada por uma força de espírito... Mas seria falso dizer que há uma etapa em que o espírito domina sozinho pois sem a técnica corporal não existe arte do combate. O budô tem uma estrutura dupla: é preciso estar sempre pronto a mostrar a sua violência, mas é preciso manter uma lucidez em que o espírito possa captar com amplitude o que se passa à volta. A lucidez permite transformar a nossa própria agressividade em potencial num estado de tranquilidade. Um poema de Miyamoto Musashi comunica esta disposição:
“A torrente invernal rápida, a água transparente, e na superfície calma como um espelho reflecte-se a lua.”
Mergulhar a mão na água gelada e rápida evoca um frio cortante como a lâmina do sabre. A rapidez é também o dinamismo do combate. Ao mesmo tempo, a superfície da água dá a imagem da pureza e da calma. Se a superfície ficar agitada, a lua ficará em pedaços. Este poema, frequentemente citado para descrever o estado de espírito do sabre, mostra de facto a componente dupla da violência e da calma.
No nível primário do combate, aquele que age por agressividade e com violência tem hipóteses de conseguir uma vitória. Mas o nível a que devemos aspirar no budô corresponde a um maior domínio técnico e de si próprio. É aquele em que o estado de espírito se reflecte da forma mais afinada. Neste caso, assim que pensamos em desferir o golpe com o objectivo de fazer mal ao nosso adversário, o superego sussura algures no fundo da consciência que isso não está correcto. Este sussuro, por mínimo que seja, é suficientemente importante para travar a espontaneidade do acto. Penso que é neste sentido que se diz:
“Se o espírito é preciso, o sabre é preciso; se o espírito não é preciso, o sabre não é preciso.”
Este ensinamento é frequentemente concebido como moral, mas na origem é técnico. A arte do combate é uma arte pragmática. Eu diria que a moral é aqui o resultado de um pragmatismo levado ao limite. É a particularidade do budô. Não se trata da associação de valores morais à prática das armas.
Se procuramos agir de forma espontânea e precisa, é preciso libertar o espírito dos entraves da consciência, sendo daí que provém o ensinamento da mente vazia.
A este nível, a procura da eficácia conduz a uma espécie de paradoxo pois, se queremos vencer o adversário (o que significa matá-lo no sentido técnico) da forma mais segura, não é preciso querer vencer (matar); é preciso desligarmo-nos da vitória, se a queremos obter. O que se aproxima da máxima: “É preciso prepararmo-nos para morrer se queremos sobreviver.”
Desta forma, o acto do combate conduz-nos a uma introspecção e a pôr em causa o que nos leva à reorganização da nossa pessoa com vista a sermos mais perspicazes, capazes de não nos deixarmos perturbar, de agir de forma espontânea e, justamente, de utilizar as nossas capacidades ao máximo... O processo desta reorganização é o treino que implica uma pressão para a auto-formação.
É aí que nasce a prática do budô.
Se seguirmos desta forma a evolução da consciência de um praticante, podemos compreender que é a partir do momento em que ele toma consciência da importância do que é normalmente invisível que a sua formação subjectiva começa. Este qualquer coisa é a chave do budô, é o “ki”. Dito de outra forma, enquanto uma pessoa não se aperceber desta sensação do “ki” na prática das artes marciais e não conseguir construir a sua prática pondo-se em causa a si mesma, não poderá de facto seguir o caminho da auto-formação por falta de iluminação num caminho escuro. Também neste sentido, acredito que o “ki” é a chave do budô.
O ki e a cultura japonesa
Na língua japonesa, existe uma grande quantidade de expressões que incluem a palavra “ki” e outras que supõem o “ki”. Traduzi, em 1993, o texto de Miyamoto Musashi (Tratado dos 5 elementos) na minha tese da Universidade Paris VII e dei-me conta do seguinte facto: Musashi utiliza no seu texto um grande número de vezes a palavra “kokoro”, que é normalmente traduzida como “o espírito”. Mas o significado desta palavra não pode ser traduzido por apenas uma palavra. De acordo com a situação, esta palavra deve ser traduzida como: espírito, sentimento, sensação, sentido, pensamento, ideia, significado, essencial, coração, centro, núcleo... Contudo, mesmo depois de ter utilizado estas palavras diferentes para traduzir a palavra “kokoro”, fica-se sempre com a sensação de que falta algo na tradução. Tentei perceber porquê durante muito tempo até compreender o seguinte: Musashi utiliza as palavras baseando-se numa sensação que os japoneses da época e sobretudo os praticantes das artes marciais possuíam e viviam de forma comum. Ele coloca de certa forma toda a sua experiência vivida neste meio de expressão (utilizo aqui a palavra meio no sentido de “meio para a pintura”). É por isso que, enquanto não captarmos a natureza deste meio, as expressões de Musashi continuarão incompletas, de certa forma imperceptíveis, deixando uma impressão de ambiguidade. E se compreendermos a presença implícita deste meio, as suas expressões tornar-se-ão substanciais.
Que meio é este?
Trata-se também do “ki”. De facto, quando li o seu texto completando-o com a sensação subjacente do ki, o sentido do mesmo tornou-se muito mais claro. Mas como fazer transparecer este não-dito na língua francesa? É o problema fundamental da tradução dos textos japoneses, em particular dos textos antigos. Também é preciso compreender que o sentido da escrita era diferente para os japoneses da época de Musashi. Por exemplo, num acto de transmissão, tanto do lado do mestre que o concede como do lado do discípulo que o recebe, encontramos com frequência a expressão: “se eu trair a confiança, devo ser punido por este, este, este e este deus”. Refere-se desta forma o nome de vários deuses para assegurar o seu compromisso mais sério. Escrever o nome do deus equivalia a um compromisso com o peso da vida.
Os japoneses viviam num ambiente que os ligava à sensação de presença do divino na natureza. Este ambiente suscita a atenção para a sensação do “ki”.
Ainda recentemente, o povo japonês vivia dando importância ao que não é visível. Mesmo nas minhas memórias de infância no campo, vivíamos impregnados deste tipo de sensações.
Através da sensação do “ki”, os japoneses parecem ter captado estes fenómenos naturais sem procurar explicá-los. Eles não excluíram do domínio da língua as sensações vagas. Penso que é uma das razões pelas quais encontramos um grande número de onomatopeias na língua japonesa. Quando eles tiveram necessidade de verbalizar o intermediário, o meio que correspondia a determinadas sensações vagas, utilizaram a palavra “ki”.
Por isso, a sensação do “ki” parece ser mais profunda e arcaica do que as que se tornaram objectos de saber.
Uma das particularidades da cultura e da sociedade japonesa parece-me ser o facto de ter dado um lugar importante a este tipo de percepções ao mesmo tempo que desenvolveu a lógica moderna.
Os métodos clássicos de desenvolvimento do “ki”
Não é preciso dizer que o combate do budô não é uma abstracção. O seu objectivo é procurar a eficácia. O aprofundamento do combate através do “ki” permite, por um lado, aumentar a eficácia e, por outro, praticar a longo prazo, e até mesmo durante toda a vida. No kendô, não é raro encontrar mestres que praticam até à véspera da sua morte dando mostras de grandes capacidades. Na arte marcial de mãos vazias, por exemplo no karatê, é raro encontrar um mestre que pratique o combate depois dos 60 anos.
No entanto, numa disciplina como o taikiken, em que o exercício do “ki” se situa no centro, o falecido K. Sawai praticou o combate concreto de mãos vazias com capacidades muito elevadas até perto dos 80 anos.
Penso que o trabalho sobre o “ki” está presente, explicita ou implicitamente, nas disciplinas do budô em que os praticantes podem percorrer um longo caminho melhorando as suas capacidades. No kendô o trabalho sobre o ki torna-se concreto a partir de um determinado nível e no taikiken desde o princípio. Em algumas escolas de jujutsu e de kenjutsu, não se insiste no trabalho do “ki” mas este está presente implicitamente.
Na tradição do budô, podemos distinguir dois métodos de desenvolvimento do “ki”, aparentemente diferentes mas no fundo complementares.
Alcançar o ki através do método do kata
O primeiro método baseia-se na formação técnica e na sua aplicação através da repetição.
É o método geralmente mais aplicado.
Por exemplo, para aprender o kendô, começa-se pelo manuseio correcto do shinai; para aprender o karatê, começa-se por aprender a forma precisa dos socos e dos pontapés. Não se trata de desferir o golpe de qualquer maneira. Em combate, não se pode obter um “ippon” se não se desferir o golpe correctamente.
Treina-se para conseguir obter a capacidade de realizar combates de nível superior com uma técnica magnífica.
Se analisarmos hoje as técnicas de kendô recomendadas, podemos classificar um determinado número de modelos técnicos a aprofundar. Estes modelos representam uma forma de ideal técnico e procura-se assimilá-los. Podemos dizer que, na realidade, os kendokas praticam o jigeiko tendo estes modelos que lhes servem de critério sobre a forma boa ou má de realizar um combate. O mesmo se aplica aos karatekas.
Apesar de no kendô estes modelos não serem classificados sob a forma de katas, podemos considerar que se trata de katas implícitos ao combate do kendô. Eles são muito diferentes dos “Nihon kendo gata”.
Da mesma forma, no karatê praticam-se as técnicas de combate directamente utilizáveis: os encadeamentos técnicos, os deslocamentos... Quase que se pode codificar um conjunto de gestos úteis e necessários para as formas do combate que tem lugar todos os dias. Quase que é possível criar katas com estes gestos, mas obter-se-ão katas diferentes dos katas “tradicionais”. Podemos dizer a mesma coisa do judô.
Em qualquer caso, não se treina o combate de qualquer forma. Treina-se tendo um modelo que se aproxima de uma determinada perfeição. Se se fizerem mil suburis, trata-se de repetir o movimento mil vezes na tentativa de se aproximar de um golpe perfeito.
Desta forma, quando treinamos repetindo uma técnica com o seu modelo idealizado, trata-se do método do kata no sentido lato do termo. A razão pela qual não dizemos que é o método do kata é o facto de normalmente se atribuir os katas à tradição. Mas quando se analisa o dinamismo inerente à génese dos katas, constata-se que no momento em que nasce um kata, cada um dos katas foi praticado como se praticam actualmente técnicas úteis, necessárias, e até mesmo indispensáveis para a formação das capacidades técnicas em combate. Não se trata de todo de um cerimonial gestual cujo desfasamento temos de justificar com a prática do combate concreto. Por isso, sem ser necessário nomeá-lo, trata-se do método do kata no sentido lato do termo que é aplicado no kendô ou no karatê.
Não basta fazer um único movimento perfeito, é necessário fazê-lo em situação de combate frente ao adversário. O jigeiko é um processo de assimilação dos elementos necessário para realizar o combate mais perfeito. Não se podem fazer combates bons por acaso.
Quando se consegue fazer combates satisfatórios, isso acontece porque se conseguiu sentir uma espécie de plenitude marcando o “ippon”. Nesta caso, criou-se, antes do golpe, um instante vulnerável no adversário pois conseguiu-se perturbar a sua guarda e o seu espírito. O ataque concentrou-se apenas no vazio do adversário, enquanto que o atacante estava cheio de energia, o que é produzido pela postura correcta do corpo, que desloca o sabre num trajecto correcto. No combate do karatê, é possível compreender esta situação substituindo o sabre pelo soco ou o pontapé.
É nesta situação que se pode sentir uma plenitude. Neste caso, isso acontece porque, mesmo sem se estar consciente disso, foi-se guiado pela sensação de qualquer coisa, agiu-se entregando-se a essa sensação. No momento do golpe, teve-se uma sensação de fusão com esta qualquer coisa. É a sensação do “ki”. Esta está presente na sensação de execução técnica perfeita durante o combate. Ela não só está presente como é tecnicamente modulada.
Ao praticar os katas, envolvemo-nos nesta sensação modulada sob a forma técnica.
Quando se estudam os katas clássicos, eles incluem os elementos necessários para atingir um estado de combate superior.
Muitos katas foram deformados durante a transmissão. Mas um kata, no momento em que é formado, mostra um estado idealizado das técnicas concretas de formação para o combate. O estado idealizado da técnica corresponde ao nível mais elevado de uma técnica, aquele em que se fundem a técnica corporal e o estado de espírito. O “ki” deve circular aí naturalmente. Podemos dizer que utilizá-lo desta forma na técnica corresponde a um princípio energético. Se um gesto técnico é perfeito, é porque está em harmonia com o princípio da eficácia que modula o “ki” sob a forma técnica. A forma perfeita de uma técnica sem eficácia não faz sentido, tal como não existe um sabre soberbo que não corta. De certa forma, toda a perfeição técnica contém o princípio da eficácia.
Vimos que o termo “ki” cobre sensações vagas e muito vastas. Nós utilizamos o “ki” no budô modulando-o sob a forma técnica.
Dizia-se a propósito de um mestre:
“Quaisquer que sejam os seus gestos, eles constituem uma técnica perfeita.”
Isso exactamente porque ele era capaz de seguir o “ki” de maneira não formal mas profundamente técnica. Tinha conseguido integrar tão bem a técnica que os seus gestos estavam conformes ao princípio subjacente das técnicas, no sentido lato do kata. É a isso que chamamos ir para além da forma aprendendo a forma: ir para além do kata penetrando profundamente no kata.
O kata mostra um modelo técnico do combate elaborado até uma forma de perfeição que nos convida e nos guia até ao topo. O kata apoia-se então num sistema em que o saber se situa numa posição elevada e os praticantes procuram atingi-lo. A forma técnica é um meio de ascensão pois não é o fim em si mesmo. O objectivo do kata é ir para além do kata.
Quando se repara no que se passa no nosso espírito durante um treino assíduo em que se procura adquirir uma técnica melhor, deparamos com a imagem do nosso mestre, daquele que nos mostrou ou ensinou a mesma. Os nossos gestos não estão associados à imagem da perfeição representada pelo nosso mestre, sobretudo quando treinamos sozinhos?
No processo de treino, esforçamo-nos por fazer tão bem como os mais experientes, como o mestre, pois desejamos ultrapassá-lo, vencê-lo. Quanto maior o peso desta imagem, mais ela nos persegue. O processo do treino consiste em lutar contra esta imagem: a repetição.
Este encadeamento psicológico é característico da aplicação do método do kata.
Uma melhor compreensão da lógica inerente ao método do kata e da sua ligação ao “ki” permite-nos avançar na prática do budô. Para tal, é indispensável saber observar e tratar os katas sob um ângulo diferente. O kata não é uma simples codificação técnica, não é um molde, nem uma cerimónia, nem um combate imaginário...
O kata é um método que exige algumas chaves para se desencadear plenamente. Vou desenvolver melhor esta ideia posteriormente.
O método energético
O segundo método traça um caminho quase inverso. O seu objectivo desde o início é o reforço do que veicula o princípio da eficácia: o “ki”. Eu diria que este método tem como objectivo reorganizar o sistema sensorial para que o corpo funcione espontaneamente com uma melhor regulação energética. Se o primeiro se baseia nas formas técnicas elaboradas até uma perfeição, o segundo apoia-se directamente no sistema sensorial inerente às técnicas gestuais da mais elevada eficácia.
Por isso, segundo este método, a técnica deve surgir espontaneamente a partir da sensação do “ki”. Ela não se baseia na aprendizagem específica das técnicas como o método do kata. Se existe uma elaboração técnica, ela virá depois de se dominar suficientemente o princípio da eficácia: o “ki”. O taikiken, que tem origem no método chinês do yi chuan, é um exemplo típico disso.
No que se refere ao sabre, mesmo para um método que se situa no lado oposto do método do kata e tem por objectivo a formação directa para o combate através da aquisição de um elemento mental e energético essencial, é obrigatório um mínimo de domínio técnico para saber utilizar a capacidade de corte do sabre.
O método de Hirayama Gyozo (1759-1828) é um bom exemplo disso pois a aprendizagem técnica está aí limitada ao mínimo. O seu método consiste numa única técnica. Um exercício a dois em que um ataca com um shinai comprido um adversário que traz uma protecção na cabeça e está armado com um shinai curto de 40 cm. Este último deve atacar para desferir um golpe no peito do primeiro, com a intenção de o trespassar, isto independentemente dos golpes que receber ao aproximar-se. Hirayama Gyozo escreveu numa das suas obras Kensetsu (Explicação do sabre):
“O objectivo da arte do sabre é matar o inimigo. O essencial é fazer passar a intenção de matar através do peito do adversário.”
A escola de Hirayama Gyozo chama-se Sinkanryu ou Shinnukiryu (a escola de trespassar pelo espírito ou a escola de trespassar pelo essencial, segundo os ideogramas).
De acordo com Hirayama Gyozo, se o nosso espírito trespassar o adversário, somos vencedores e é o método mais seguro e eficaz no combate real com o sabre. Considero-o um trabalho energético cujo objectivo é reforçar o espírito da forma mais directa. A simplicidade deste treino é a repetição de um único gesto, o que é comparável ao exercício aparentemente simples de ficar de pé e imóvel em “ritsuzen” (meditação em pé).
No entanto, com a postura imóvel do ritsuzen treina-se o espírito para criar uma disposição mental e física para derrotar o adversário, qualquer que ele seja. No combate com o sabre, é preciso utilizar correctamente o mesmo, razão pela qual o exercício simples dos suburis estava na base do método de Hirayama Gyozo. O seu método consiste neste gesto simples e em reforçar o que é mais fundamental no combate. Caracterizo-o então como um método cujo objectivo é reforçar de forma directa e simples o essencial do aspecto energético: o “ki” do combate.
Na tradição do sabre, um método energético é aplicado com mais frequência em paralelo ao método dos katas ou no seguimento deste.
Tomarei como exemplo dois mestres célebres do século XIX, Shirai Toru (1783 até 1845) e Yamaoka Tesshu (1836-1888), que seguiram este caminho. Os problemas com que estes dois praticantes foram confrontados são incontornáveis para qualquer reflexão sobre o método das artes marciais japonesas. Durante a segunda metade da sua vida, Shirai Toru dominava os seus adversários através da estranha força que emanava do seu sabre. Diz-se que a ponta do seu bokken (sabre de madeira) desenhava um círculo luminoso. Antes de atingir este nível, encontrou um obstáculo que só conseguiu ultrapassar à custa de muitos anos de treino e de meditação ascética. Este método, o “rentan”, baseia-se principalmente num trabalho energético que corresponde em grande parte ao qi gong marcial de hoje. Segundo Shirai Toru, o “rentan” é o único método concreto para atingir o nível superior da via do sabre.
Yamaoka Tesshu atingiu também um nível extraordinário no sabre; baseou-se na prática da meditação. Era pobre e, perto dos trinta anos, vivia numa casa em mau estado. Tinha recebido a alcunha de Tetsu [Tesshu?], o esfarrapado, ou também Tetsu [Tesshu?], o demónio do dojo. Vários dos seus amigos contam que de noite se ouviam os ratos no tecto da casa. Mas assim que Tesshu começava o zazen, o seu “ki” enchia o espaço e os ratos deixavam de fazer barulho, sendo que alguns até caiam das traves sobre as quais corriam. Vários anos depois, quando Tesshu começava o zazen, os ratos deixavam de correr e desciam para andar à sua volta. Não sei se esta história é verdadeira.
Em qualquer caso, existem vários testemunhos sobre a força do “ki” de Tesshu. Takano Sazaburo (1862-1950), um dos maiores mestres do kendô do início do século, deu o seguinte testemunho:
“Durante o treino, o mestre deixava que os alunos lhe desferissem golpes, mas eles nunca conseguiam ter a sensação de lhe tocar verdadeiramente. Quando tentava desferir-lhe um golpe forte, ficava sempre com a ponta do shinai do mestre na minha garganta... A atitude do Mestre era semelhante à de uma bola que nunca se pode fazer cair.
Ele tinha uma agilidade insondável, pois essa agilidade continha uma força de aço.
É por isso que durante o treino, mesmo desferindo o golpe no meio da sua cabeça, nunca conseguia sentir que lhe tinha tocado. Todos eram empurrados pelo seu ki... Mesmo quando a ponta do seu shinai ficava a trinta centímetros de mim, por um pequeno movimento de ponta, ficava sempre com a sensação de ter recebido um tsuki (golpe). O mestre não manejava o sabre com as mãos mas sim com o seu centro de energia... Aconteceu-me um dia receber um golpe de sabre muito leve e não ter sentido nada no momento. Mas ao chegar a casa tive uma sensação estranha, como se a minha garganta tivesse sido furada e o ar circulasse por aí. Esta sensação estranha continuou durante dois dias.”
Se estes dois grandes mestres puderam transformar radicalmente a qualidade do seu sabre, um através do rentan e o outro através do zazen, podemos pensar que estas práticas os ajudaram a reorganizar a forma de sentir e de agir que serve de base à técnica do sabre. Do ponto de vista prático, a pessoa que treina com este método não pensa necessariamente que começou uma reorganização. Subjectivamente, sentirá uma melhoria moral ou, de acordo com as suas crenças, uma iluminação ou uma purificação do corpo e do espírito... Mas o que é comum é provavelmente a forte sensação do “ki”.
Se a meditação influenciou a prática do sabre japonês, não o fez enquanto filosofia especulativa, mas fundamentalmente através da prática corporal do zazen. Penso que, pelo menos no início, a meditação suscitou o interesse dos guerreiros do período das guerras feudais pelo seu lado pragmático.
Conforme disse mais acima, uma particularidade do budô consiste no facto de, ao desenvolver a fundo o pragmatismo, este começar a confundir-se com a moral e a filosofia. Mesmo se a filosofia do budô é intrigante a nível intelectual, discutir a sua filosofia não ajudará de todo a compreender o budô.
O método do “rentan”, tal como o da meditação, tem por objectivo desenvolver o essencial do budô sem passar pela aprendizagem de técnicas específicas. Mas na arte do sabre, que exige um manuseio e trajectos precisos, este método só pode ser aplicado depois de se ter dominado um mínimo de técnica. Pois mesmo tendo adquirido um domínio energético e uma percepção precisa da acção em combate, os nossos gestos não podem ser transpostos com eficácia se o nosso sabre não seguir os trajectos correctos. Mesmo com uma força muito grande, o sabre não corta se a lâmina não estiver apontada na direcção correcta.
Enquanto que na arte do combate de mãos vazias se trata de golpear e não de trespassar com uma lâmina, sendo possível dar um golpe eficaz sem a precisão que é necessária com a lâmina do sabre. Na medida em que é possível produzir um impacto suficiente, o golpe é eficaz independentemente do ângulo de ataque.
Conclusão
Para desenvolver a prática qualitativa do budô ultrapassando barreiras culturais, penso que devemos ter a abertura de espírito que nos permita compreender que existem outros sistemas de pensamento noutras culturas. É preciso, ao mesmo tempo, evidentemente, enfrentar as técnicas do budô. Devemos ver nas mesmas um dos elementos essenciais pelos quais é constituído o budô. Tenho a certeza de que a chave do budô está no nosso corpo, o que significa que está para além das barreiras culturais. Penso que se trata do “ki”, mas não se trata do “ki” em geral. Na prática do budô, estamos perante o “ki” modulado sob a forma técnica, sem o qual o budô não pode existir.
Analisei e apresentei de forma breve dois métodos clássicos cujo objectivo é desenvolver o “ki”, seja através da prática dos katas no sentido lato, seja directamente através do treino energético.
A história do budô, em particular a do kendô, mostra que estes dois métodos são convergentes.
Pôr em evidência o trabalho sobre o “ki” permite não só concretizar a prática do budô como também abrir a possibilidade de uma prática a longo prazo.
O budô pode contribuir dessa forma para o bem-estar e o reforço vital. De acordo com a minha análise, a sensação do “ki” está na base do budô. Ela também pode ser sentida para além das barreiras culturais, abrindo assim perspectivas acessíveis fora da cultura budista e xintoísta japonesa, sem deixar de conservar o que constitui a especificidade do budô.
Kenji Tokitsu
Documento de arquivo escrito em Março de 1998 por Kenji Tokitsu publicado em Numéro spécial du Bulletin ShaolinMon*
ISSN 1261758
X Retranscrição do texto pronunciado no dia 14 de Março de 1998 no Taikai de Paris pelo Mestre Kenji Tokitsu
Tradução para português por Margarida Dias, aluna do Professor Inacio Cristo Dias / Jisei Dojo
Em França, existe um número considerável de pessoas interessadas nas artes marciais, nomeadamente no budô japonês. No entanto, a prática do budô não está suficientemente difundida pois está à margem do desporto em que predomina a competição.
Mais curioso ainda, o budô não parece constituir um objecto de estudo sério, seja ao nível da investigação, do ensino universitário ou mesmo no quadro da Sociedade Francesa de Estudos Japoneses. Contudo, se tentarmos aprofundar o conhecimento da cultura tradicional japonesa, não me parece fazer sentido por de lado o budô e o estudo da tradição guerreira. De facto, os guerreiros influenciaram desde muito cedo a história do Japão e governaram a sociedade japonesa durante 7 séculos, até à Restauração Meiji, que aconteceu há pouco mais de um século. A cultura dos guerreiros teve então um papel sociocultural importante, que se prolongou mesmo depois do fim do seu domínio político. A cultura dos guerreiros manifesta-se hoje em dia no budô e, de uma forma ainda mais profunda, no comportamento dos japoneses.
Não direi, como alguns, que o crescimento económico japonês depois da Segunda Guerra Mundial se deve à aplicação do comportamento guerreiro na área económica pois a realidade parece-me ser muito mais complexa. No entanto, não creio que seja incorrecto dizer que a tradição guerreira continua profundamente presente nos modelos de conduta dos japoneses.
O período feudal deixou-nos um grande número de obras literárias e artísticas, e surge em muitas obras culturais modernas. Tendo isto em conta, como é que poderíamos abordar a cultura tradicional japonesa sem fazer caso dos elementos guerreiros?
O nô (teatro musical), o chadô (cerimónia do chá), o haiku (poesia), o bunraku (teatro de marionetas), o kabuki (teatro dança)... foram desenvolvidos numa sociedade dominada pelo sabre. Isto implica uma concepção da vida e da morte diferente da que temos actualmente. A sensibilidade destas obras culturais foi modelada por aqueles que viviam na época em que o sabre desempenhava um papel concreto.
Em França, os estudos aprofundados sobre a cultura japonesa parecem limitar-se ao campo literário e artístico, não tendo em conta as concepções do corpo e da morte que, no entanto, eram fundamentais para todos na sociedade tradicional.
O facto de o budô estar excluído da reflexão intelectual deve-se provavelmente à tendência cultural francesa em que o modelo intelectual tende a excluir os problemas colocados pelo corpo. Não voltarei a referir aqui esta questão já conhecida. Só que esta situação parece-me lamentável e espero que o budô consiga uma posição digna e justa nos estudos franceses sobre a cultura japonesa. Para isso, é indispensável que os praticantes franceses do budô tenham um papel activo na sua transformação numa prática cultural de pleno direito. Mas o que é o budô?
Mencionei o budô, mas de que se trata? Contrariamente à imagem que lhe é associada, o budô não é uma retoma directa da prática guerreira das artes marciais. Trata-se de uma concepção moderna que tem por objectivo uma formação global do ser humano, intelectual e física, através das disciplinas tradicionais de combate. O “budô” é um termo geral que engloba todas estas disciplinas.
No Japão, quando se fala sobre o espírito da prática do kendô, do judô ou do karatê, utiliza-se muitas vezes a expressão “enquanto”. Por exemplo, o kendô “enquanto” desporto de competição ou o kendô “enquanto” budô.
O budô evoca uma imagem de seriedade, de severidade, de ritual, de respeito pelos mais velhos e pelo mestre, de meditação silenciosa... Com estas imagens, o budô transmite a ideia de uma prática conservadora e de uma atitude austera. O dojo evoca a imagem serena de um espaço escuro, com pavimento plano de madeira, por oposição à imagem do desporto sob a luz brilhante de um ginásio ou de um espaço ao ar livre. De facto, quando se fala de desporto, a imagem é mais aberta e de certa forma com mais luz solar. No Japão, quando falamos de budô a propósito do karatê, tanto nos referimos a uma prática dura na qual não evitamos os combates de “K.O.” como a uma prática austera que se afasta da ideia de competição. Algumas pessoas associam a isso um treino ascético na montanha. A oposição à violência é uma das suas características.
Noutras disciplinas, como o tiro com arco, insiste-se de tal forma no aspecto espiritual e na harmonia na prática cerimonial que a ideia de combate não está incluída.
No Japão, existe por isso uma tendência para definir o budô pelo seu aspecto de austeridade e dureza. Mas trata-se de uma definição mais emocional do que teórica que não nos pode levar longe. No que se refere à severidade e à dureza dos riscos na prática, existem no desporto disciplinas em que o risco é muito maior, levado ao extremo no alpinismo ou nas corridas de barco à vela. O que é então o budô?
A noção de dô
Não faz sentido definir o budô pelos seus traços de austeridade e de severidade, ou pela espiritualidade do ascetismo. Budô significa literalmente a via marcial. É necessário reflectir sobre a prática técnica das artes marciais (bu) em associação com a noção de via (dô).
No Japão actual, a modernidade é fortemente valorizada e alguns jovens têm uma reacção quase alérgica assim que se fala de dô. Eu penso que a via não é arcaísmo nem misticismo. É a duração da vida, desde o nascimento até à morte, que constitui a via. Ela é feita de altos e baixos. Cada um percorre esta via, mas ela não se impõe à consciência e é fácil dispersarmo-nos no tempo que passa. A partir do momento em que se fala de via, existe uma direcção ou um objectivo.
Quando, neste lapso de tempo da vida, se associa à prática das artes marciais uma pressão para o auto-aperfeiçoamento, ou seja, para o aperfeiçoamento da pessoa na sua totalidade, nasce a ideia de budô. A ideia do auto-aperfeiçoamento está presente em todas as culturas.
Contudo, o que isso significa para os japoneses parece-me ser muito diferente do seu significado para os europeus. No entanto, escondida por trás da ideia de progressão, a diferença não aparece numa primeira abordagem. Se um ocidental quer praticar o budô na sua plenitude, um dos problemas mais importantes parece-me ser o de pôr em prática a concepção da via (dô).
É evidente que a questão do budô não se põe nos mesmos termos para os japoneses e para os ocidentais. A compreensão mútua deve ultrapassar um determinado número de problemas que vou tentar especificar.
A transmissão do budô pelos japoneses
Comecemos pelas dificuldades ou pelos problemas com que são confrontados os mestres japoneses que procuram transmitir o budô a estrangeiros que querem construir a sua prática do budô.
Quais são os problemas explícitos e implícitos com que são confrontados estes mestres japoneses de budô?
Para os mestres japoneses, uma das dificuldades mais importantes é a comunicação das técnicas corporais do budô associadas aos aspectos espirituais. Isto porque se querem ser realmente compreendidos têm de relativizar um pouco a sua concepção da vida, o que os leva a pôr de certa forma em causa a sua própria concepção do mundo. Isso não é uma coisa fácil.
Para avançar na prática do budô, cada um sabe que é preciso concentração, vontade, convicção, e até mesmo um espírito perseverante... por forma a conseguir persistir durante anos de treino. Na sua maior parte, os mestres vão buscar a energia necessária para alimentar a prática do budô à sensação de uma procura da perfeição. Só que esta sensação, mesmo quando não é totalmente consciente, tem origem numa abordagem cujo objectivo é aproximar-se do estado de perfeição representado pelo sincretismo da imagem de Buda e dos deuses xintoístas, valor profundamente presente na sociedade japonesa. Ela implica uma intuição que funde o mundo humano e o universo cósmico. É por isso que os japoneses têm tendência a considerá-la como um valor universal e a pressupor que está presente naqueles a quem se dirigem, mesmo pertencendo a uma outra cultura. Esse é o problema.
Esta tendência para o universalismo pode exprimir-se pela generosidade numa situação confortável, mas é preciso assinalar que era uma das justificações da ideologia de dominação do mundo durante a Segunda Guerra Mundial. Não foi por acaso que, durante as guerras, o budô foi facilmente confundido com um nacionalismo que excluía de facto qualquer valor de vida que não o do Japão Imperial.
A constância e a tensão do esforço exigido pelo budô tendem a reforçar a visão da universalidade do valor da vida que está contida na via pois ter várias visões pode levar ao “mayoi” (a perda de direcção a seguir). O budô cria a força de atingir directamente o objectivo, mesmo se por vezes em detrimento do pensamento crítico.
Contudo, a possibilidade de praticar o budô tendo por objectivo a formação do homem, com uma difusão das suas disciplinas à escala planetária, é um tema de discussão actual no Japão. Na minha opinião, isso só faz sentido se encontrarmos uma outra forma de captar o essencial do budô, libertando-o da cosmogonia japonesa. É essa dimensão do budô japonês que me dedico a definir. Só ela permitiria comunicar na cultura ocidental o que constitui o essencial do budô.
Indo mais longe, acho que não há um budô único, mas sim várias possibilidades na sua prática e apreciação. Neste caso, diria mesmo que a maior parte dos mestres japoneses, sobretudo os de mais idade, têm pouca consciência da pluralidade das visões da vida com as quais o budô se vê confrontado actualmente. Isto principalmente devido à sua educação e também às barreiras linguísticas e à falta de experiência de comunicação com os estrangeiros...
É preciso reconhecer que poucos mestres estão dispostos a compreender outros sistemas de pensamento que não os dos japoneses, sobretudo no que se refere à prática do budô. Para a maior parte dos mestres de mais idade, o budô é único e, consequentemente, a comunicação do budô só pode ser unilateral: do mestre para os alunos e dos japoneses para os estrangeiros. É impensável para eles que o conceito de budô seja reexaminado e possa ser modificado ou precisado pelo contacto cultural com estrangeiros.
No entanto, acho que este é o momento de reexaminar e precisar o conceito de budo pois a sua prática tornou-se actualmente um fenómeno planetário e esta situação parece-me consolidar-se.
Os mestres japoneses são geralmente muito generosos relativamente aos estrangeiros na medida em que o seu ponto de vista não é posto em causa. Penso que isso resulta principalmente da ilusão de compreensão causada pela insuficiência da comunicação linguística.
Assim que a mesma se dissipa e que surge o mal-entendido, eles podem parecer egocêntricos, incompreensíveis, herméticos aos seus alunos europeus. Creio que alguns praticantes tiveram este tipo de experiência.
Achei que devia indicar estes aspectos positivos e negativos pois parecem-me reflectir os problemas fundamentais que devemos ultrapassar para chegar ao budô do futuro.
Mas se os mestres japoneses não conseguem conduzir ou comunicar correctamente o budô ao exterior, o budô fora do Japão arrisca-se a ficar irreconhecível, perdendo aquilo que lhe dá a sua qualidade específica.
Sobretudo para o kendô, a responsabilidade dos mestres japoneses é muito maior pois os mestres de alto nível no Japão são muito mais numerosos do que noutros países. A sua responsabilidade é múltipla e maior pois, na minha opinião, é a única disciplina do budô actual onde está preservada a ideia do budô no seu sentido pleno através da prática do combate.
Enquanto que as outras disciplinas do budô são algumas delas confundidas com os desportos de combate e outras se limitam à prática quase exclusiva dos kata, o que dá, mesmo que erradamente, a impressão de práticas folclóricas. É necessário reconhecer também que actualmente o valor do kendô está ameaçado, ao ponto de fragilizar as suas bases.
Neste caso, a responsabilidade dos mestres e dos praticantes japoneses consiste, em primeiro lugar, em preservar e desenvolver o património cultural, o kendô e o budô; em segundo lugar, em comunicá-lo e transmiti-lo aos outros. Para isso, é necessário ter uma visão ampla do mundo do budô por forma a analisar e compreender a situação actual do Japão e dos outros países, e a elaborar uma teoria e um método de comunicação do budô que possa responder-lhe de forma plena.
Por estas razões, creio que é necessária uma evolução e uma progressão dos mestres e dos investigadores japoneses, e que esta é decisiva para o futuro do budô.
O problema do budô para os praticantes estrangeiros
Agora vamos abordar alguns problemas com os quais podem ser confrontados os praticantes estrangeiros, em particular os ocidentais.
A via (dô) para os japoneses diz respeito a toda a duração da vida. A noção do budô implica uma pressão para o auto-aperfeiçoamento, ou seja, o aperfeiçoamento da pessoa na sua totalidade através da prática marcial. Esta expressão é compreensível para os ocidentais, mas eles não lhe dão o mesmo sentido que os japoneses.
Já vimos que a forma de elevar a qualidade humana pela prática do budô tem origem na concepção budista e xintoísta. Os seres humanos podem atingir o estado de Buda, um estado divino, e podem confundir-se com um deus de um santuário. Podemos referir, por exemplo, o santuário Hayashizaki Jinja onde o fundador da escola de Iai, Hayashizaki Jinsuke Shigenobu, é venerado como deus de iai. Há um grande número de santuários que veneram uma pessoa como deus. Esta forma de pensar pressupõe que um homem pode, através dos seus esforços, atingir um estado de perfeição na sua existência.
Aumentando o seu valor humano, cada um de nós pode mudar a qualidade do seu ser, atingir um valor que se confunde com uma forma de absoluto. A diferença relativamente à cultura cristã, em que a distância entre o Homem e Deus é inultrapassável, é evidente.
O discurso filosófico e ético das artes marciais japonesas ou do budô baseiam-se fundamentalmente na concepção budista e xintoísta do mundo e do universo na qual não existe absoluto pois nada existe sem ser relativo aos outros. O universo não se baseia no conceito do Deus absoluto. Conheço alguns mestres japoneses de artes marciais que são cristãos. Apesar de a sua fé ser cristã, isso não os impede de serem sensíveis à energia universal à maneira xintoísta e budista.
Baseada nesta concepção do mundo e nesta forma de sensibilidade, a ideia da auto-formação é central no budô. Desenvolvê-la na perspectiva de outras culturas seria de uma certa forma prolongar a generosidade da lógica do budismo, criar uma obra apagando-se a si mesmo. Neste âmbito, pressupõe-se que cada ser humano pode aspirar à, e atingir a perfeição seguindo a via.
Alguns investigadores ocidentais definem o budô destacando aspectos comuns a disciplinas das artes marciais de origens diversas.
Desta forma, a prática do budô leva os praticantes ocidentais, tal como os mestres japoneses, a uma certa forma de pôr em causa a sua forma de ser. Para os ocidentais, não se trata de tornarem-se japoneses. Alguns europeus parecem viver de uma forma mais japonesa do que os japoneses. Penso que não é preciso perder ou tornar assim a sua identidade ambígua; pelo contrário, é necessário reforçar a sua própria identidade vivendo intensamente, aqui e agora, em cada momento.
Aceder à realização do budô concebido de uma forma planetária levanta, deste ponto de vista, uma problemática da diferenciação. Penso que esta é a dificuldade fundamental para os praticantes do budô.
Uma chave para o budô
A forma de pensar da via aparece espontaneamente quando a pressão para a auto-formação se associa à prática da arte marcial, à progressão no decurso do tempo. Dito de outra forma, enquanto esta pressão não surgir, uma prática não pode incluir a forma de pensar da via e, consequentemente, ela não se transforma em budô. No sentido rigoroso do termo, o budô não designa disciplinas específicas mas sim a qualidade e o conteúdo prático de uma disciplina. Por isso, não é por praticar a sério o kendô, o karatedô, o jodô, o kyudô... que se pratica o budô. É quando a prática inclui espontaneamente a pressão para auto-formação da pessoa na sua totalidade, a da via, que a prática de cada um se transforma em budô.
O budô não constitui por isso um género entre as disciplinas de combate, mas sim a forma como cada um se dedica a uma disciplina da arte do combate procurando a eficácia.
A pressão para a auto-formação, no sentido que apresentei acima, não surge de uma forma abstracta, apoiando-se antes numa sensação corporal concreta. Trata-se de uma sensação corporal que todos os seres humanos podem conceber independentemente da sua origem cultural. Dito de outra forma, esta sensação corporal é a chave que permite praticar o budô na sua plenitude, ultrapassando as barreiras culturais.
Em que consiste esta sensação corporal?
Em japonês, ela exprime-se através da noção do “ki”. Penso que a sensação corporal do “ki” está normalmente presente na experiência humana. Mas a forma de interpretação desta sensação varia de acordo com a cultura. Por exemplo, o aspecto lógico está muito mais desenvolvido nas línguas ocidentais do que na língua japonesa. Mas não existe nas línguas ocidentais, e é uma dificuldade importante das traduções, uma palavra equivalente a “ki”.
Este termo inclui em japonês as sensações e as impressões misteriosas, vagas, intangíveis que tocam em algo no mais profundo do nosso ser, que está relacionado com uma intensidade provavelmente arcaica ou reprimida. Este conjunto de impressões dificilmente definíveis por uma palavra está presente na experiência quotidiana, na literatura e nas artes japonesas; quando temos de a nomear, dizemos o “ki”. A exclusão destas sensações e impressões da superfície dos vocábulos parece-me correlativa do desenvolvimento do carácter lógico das línguas ocidentais. O pensamento racional desenvolveu-se provavelmente através do recalcamento desta sensibilidade.
É por isso que, na prática, a sensação do “ki” deve ser captada como “ki” sem passar por um sistema de tradução com palavras equivalentes. Penso que para ter a chave do budô ultrapassando os obstáculos culturais, é necessário cultivar a intensidade da sensação do ki e guiarmo-nos em extensão e profundidade por esta sensação, por meio das técnicas corporais do combate.
No kendô, o praticante aprende desde o início o que é o “ki” de uma forma simples, através da expressão “kikentai”. Ao longo dos anos, aprende a importância do “sémé” para o combate. Não podemos descrever de uma forma simples o que é o “sémé”. Mas é claro que o nível do praticante se reflecte directamente na qualidade do “sémé”. Geralmente, o “sémé” implica atitudes ou gestos que comunicam a combatividade do praticante face ao adversário. O “sémé” é muito mais do que as fintas que são utilizadas no combate de karatê. Mesmo fazendo fintas, se estes gestos não conseguirem fazer com que o adversário reaja, não constituem o “sémé”. Pelo contrário, trata-se do “sémé” quando o gesto, por mais pequeno que seja, consegue perturbar o espírito do adversário e, num nível mais avançado, quando se consegue alterar o espírito do adversário sem fazer um sinal explícito. Quando se consegue perturbar o adversário através do “ki” que emana de nós, sem um gesto aparente, trata-se do “kisémé”.
É por isso que não é exacto definir o “sémé” pela descrição dos movimentos. O gesto do “sémé” é aquele que comunica alguma coisa essencial. Se esta coisa essencial não é comunicada, nenhum gesto pode constituir o “sémé”. Dito de outra forma, se esta coisa é comunicada sem um gesto aparente, esta transmissão constitui o “sémé”. Esta coisa essencial é o “ki”.
Durante os combates de kendô que vão acontecer a partir desta tarde, os praticantes das artes marciais que não o kendô devem concentrar a sua atenção na forma como os combatentes cruzam os seus shinai. Verão que, quando as pontas se cruzam, fazem movimentos subtis, ora de forma calma, ora de forma ligeira e rápida.
Trata-se do combate das pontas, o combate implícito em que os praticantes lutam para ocupar a linha central do adversário, a sua linha vital; para impor a sua iniciativa de ataque, para criar uma ocasião em que o seu golpe pode ter sucesso sem falta. O combate mais importante tem lugar nesta troca aparentemente pouco dinâmica.
É o sentido do célebre ensinamento: “Não ganhes depois de teres desferido o golpe, desfere o golpe depois de teres ganhado.”
“Depois de teres ganhado” significa precisamente depois de ter ganhado em combate de pontas e de “sémé”.
No momento em que os dois adversários se enfrentam, começa a interferência do “ki”. Os gestos do “sémé” são uma forma de projectar o “ki” sobre o adversário. Se o acto do “sémé” tem influência sobre a atitude do adversário, é porque este acto toca e altera a percepção principal do adversário. Eu diria a interferência dos “ki”. É por isso que podemos dizer que, mesmo numa etapa em que fazemos o sémé sem ter consciência do “ki”, o essencial do “sémé” consiste no “ki”.
Creio que este nível de combate é desconhecido em muitas disciplinas (o judô, o karatê, o boxe,...), nas quais a consciência dos praticantes está limitada aos elementos mais directamente perceptíveis: a velocidade, a força, a agressividade... Trata-se de uma percepção muito difícil de estabilizar num combate de percussão como o karatê.
Pessoalmente, a minha preocupação principal é pôr em evidência e aplicar esta forma do combate na prática do karatê.
É por isso no kendô que podemos constatar, da forma mais concreta, o papel do que chamamos de “ki”. Sobre este aspecto, o kendô é uma disciplina privilegiada.
Contudo, não se trata de fazer um elogio incondicional do kendô. Pois, antigamente, o kendô parece ter incluído técnicas corporais muito mais ricas com um registo técnico mais amplo. Relativamente à sua tradição, o modelo do kendô actual parece-me ser incompleto, sobretudo no que diz respeito à formação geral do corpo e às regras do combate. Creio que estes são aspectos aos quais os praticantes contemporâneos têm de ser sensíveis caso aprofundem o valor do kendô “enquanto budô”.
Em qualquer caso, podemos dizer que é no momento em que o praticante começa a sentir profundamente o papel do “ki” que a sua prática do combate tende a constituir-se numa via e que surge uma verdadeira consciência do budô.
Porquê?
Sentir profundamente o papel do “ki” implica que um praticante combata procurando “desferir o golpe depois de ter ganhado”. Não se trata de procurar vencer desferindo um golpe a todo o custo, mas sim de desferir o golpe com uma certeza. Trata-se então de construir um combate no qual a certeza da sensação é confirmada por um golpe seguro. Quando atinge este nível, o praticante dá uma grande importância à base do combate, ou seja, ao combate do “ki”, aquele que se desenrola antes da troca concreta dos golpes.
Se, através do sémé ou pela ofensiva do “ki” do adversário, se ficar perturbado e se delinear um movimento de defesa no vazio, isso significa que se agiu explicitamente contra o que é implícito. Dessa forma, comete-se um erro no discernimento da realidade. Se nos dermos conta disso instantaneamente, sentiremos em nós mesmos uma dissociação, pois o espírito não pode deter o corpo no seu gesto errado. Se delinearmos um gesto inútil, é porque o adversário conseguiu fazer-nos mexer contra a nossa vontade. Perde-se então nesse instante preciso a possibilidade de tomar a iniciativa, perdendo por isso antes de receber o seu golpe.
Quando a percepção está aberta à interferência dos “ki”, perder desta forma é tão importante como receber um golpe concreto. O problema torna-se então: como distinguir o verdadeiro do falso, como continuar imperturbável contra a ofensiva do adversário através do gesto ou do “ki”.
Quando se procura uma oportunidade para atacar o adversário, utiliza-se o sémé para ganhar o combate das pontas de forma a que o adversário desvie a ponta do sabre da sua linha central, da sua linha vital. O adversário que oferece uma abertura sem querer fica vulnerável. Nesse instante, desfere-se-lhe um golpe e é uma vitória incontestável.
Ao tocar por acaso, não ficaremos satisfeitos se o adversário ficar imperturbável apesar do nosso golpe. Pensaremos então: desferi um golpe mas o mesmo não conseguiu perturbar o seu espírito. O problema será então: como alterar o espírito do outro através do nosso próprio “ki”?
Desta forma, o objectivo de um praticante passa progressivamente de uma preocupação de técnica gestual simples para um estado de espírito. Permanecer imperceptível perante os sémé e distinguir o falso do verdadeiro nos actos do outro significa adquirir uma perspicácia sustentada por uma força de espírito... Mas seria falso dizer que há uma etapa em que o espírito domina sozinho pois sem a técnica corporal não existe arte do combate. O budô tem uma estrutura dupla: é preciso estar sempre pronto a mostrar a sua violência, mas é preciso manter uma lucidez em que o espírito possa captar com amplitude o que se passa à volta. A lucidez permite transformar a nossa própria agressividade em potencial num estado de tranquilidade. Um poema de Miyamoto Musashi comunica esta disposição:
“A torrente invernal rápida, a água transparente, e na superfície calma como um espelho reflecte-se a lua.”
Mergulhar a mão na água gelada e rápida evoca um frio cortante como a lâmina do sabre. A rapidez é também o dinamismo do combate. Ao mesmo tempo, a superfície da água dá a imagem da pureza e da calma. Se a superfície ficar agitada, a lua ficará em pedaços. Este poema, frequentemente citado para descrever o estado de espírito do sabre, mostra de facto a componente dupla da violência e da calma.
No nível primário do combate, aquele que age por agressividade e com violência tem hipóteses de conseguir uma vitória. Mas o nível a que devemos aspirar no budô corresponde a um maior domínio técnico e de si próprio. É aquele em que o estado de espírito se reflecte da forma mais afinada. Neste caso, assim que pensamos em desferir o golpe com o objectivo de fazer mal ao nosso adversário, o superego sussura algures no fundo da consciência que isso não está correcto. Este sussuro, por mínimo que seja, é suficientemente importante para travar a espontaneidade do acto. Penso que é neste sentido que se diz:
“Se o espírito é preciso, o sabre é preciso; se o espírito não é preciso, o sabre não é preciso.”
Este ensinamento é frequentemente concebido como moral, mas na origem é técnico. A arte do combate é uma arte pragmática. Eu diria que a moral é aqui o resultado de um pragmatismo levado ao limite. É a particularidade do budô. Não se trata da associação de valores morais à prática das armas.
Se procuramos agir de forma espontânea e precisa, é preciso libertar o espírito dos entraves da consciência, sendo daí que provém o ensinamento da mente vazia.
A este nível, a procura da eficácia conduz a uma espécie de paradoxo pois, se queremos vencer o adversário (o que significa matá-lo no sentido técnico) da forma mais segura, não é preciso querer vencer (matar); é preciso desligarmo-nos da vitória, se a queremos obter. O que se aproxima da máxima: “É preciso prepararmo-nos para morrer se queremos sobreviver.”
Desta forma, o acto do combate conduz-nos a uma introspecção e a pôr em causa o que nos leva à reorganização da nossa pessoa com vista a sermos mais perspicazes, capazes de não nos deixarmos perturbar, de agir de forma espontânea e, justamente, de utilizar as nossas capacidades ao máximo... O processo desta reorganização é o treino que implica uma pressão para a auto-formação.
É aí que nasce a prática do budô.
Se seguirmos desta forma a evolução da consciência de um praticante, podemos compreender que é a partir do momento em que ele toma consciência da importância do que é normalmente invisível que a sua formação subjectiva começa. Este qualquer coisa é a chave do budô, é o “ki”. Dito de outra forma, enquanto uma pessoa não se aperceber desta sensação do “ki” na prática das artes marciais e não conseguir construir a sua prática pondo-se em causa a si mesma, não poderá de facto seguir o caminho da auto-formação por falta de iluminação num caminho escuro. Também neste sentido, acredito que o “ki” é a chave do budô.
O ki e a cultura japonesa
Na língua japonesa, existe uma grande quantidade de expressões que incluem a palavra “ki” e outras que supõem o “ki”. Traduzi, em 1993, o texto de Miyamoto Musashi (Tratado dos 5 elementos) na minha tese da Universidade Paris VII e dei-me conta do seguinte facto: Musashi utiliza no seu texto um grande número de vezes a palavra “kokoro”, que é normalmente traduzida como “o espírito”. Mas o significado desta palavra não pode ser traduzido por apenas uma palavra. De acordo com a situação, esta palavra deve ser traduzida como: espírito, sentimento, sensação, sentido, pensamento, ideia, significado, essencial, coração, centro, núcleo... Contudo, mesmo depois de ter utilizado estas palavras diferentes para traduzir a palavra “kokoro”, fica-se sempre com a sensação de que falta algo na tradução. Tentei perceber porquê durante muito tempo até compreender o seguinte: Musashi utiliza as palavras baseando-se numa sensação que os japoneses da época e sobretudo os praticantes das artes marciais possuíam e viviam de forma comum. Ele coloca de certa forma toda a sua experiência vivida neste meio de expressão (utilizo aqui a palavra meio no sentido de “meio para a pintura”). É por isso que, enquanto não captarmos a natureza deste meio, as expressões de Musashi continuarão incompletas, de certa forma imperceptíveis, deixando uma impressão de ambiguidade. E se compreendermos a presença implícita deste meio, as suas expressões tornar-se-ão substanciais.
Que meio é este?
Trata-se também do “ki”. De facto, quando li o seu texto completando-o com a sensação subjacente do ki, o sentido do mesmo tornou-se muito mais claro. Mas como fazer transparecer este não-dito na língua francesa? É o problema fundamental da tradução dos textos japoneses, em particular dos textos antigos. Também é preciso compreender que o sentido da escrita era diferente para os japoneses da época de Musashi. Por exemplo, num acto de transmissão, tanto do lado do mestre que o concede como do lado do discípulo que o recebe, encontramos com frequência a expressão: “se eu trair a confiança, devo ser punido por este, este, este e este deus”. Refere-se desta forma o nome de vários deuses para assegurar o seu compromisso mais sério. Escrever o nome do deus equivalia a um compromisso com o peso da vida.
Os japoneses viviam num ambiente que os ligava à sensação de presença do divino na natureza. Este ambiente suscita a atenção para a sensação do “ki”.
Ainda recentemente, o povo japonês vivia dando importância ao que não é visível. Mesmo nas minhas memórias de infância no campo, vivíamos impregnados deste tipo de sensações.
Através da sensação do “ki”, os japoneses parecem ter captado estes fenómenos naturais sem procurar explicá-los. Eles não excluíram do domínio da língua as sensações vagas. Penso que é uma das razões pelas quais encontramos um grande número de onomatopeias na língua japonesa. Quando eles tiveram necessidade de verbalizar o intermediário, o meio que correspondia a determinadas sensações vagas, utilizaram a palavra “ki”.
Por isso, a sensação do “ki” parece ser mais profunda e arcaica do que as que se tornaram objectos de saber.
Uma das particularidades da cultura e da sociedade japonesa parece-me ser o facto de ter dado um lugar importante a este tipo de percepções ao mesmo tempo que desenvolveu a lógica moderna.
Os métodos clássicos de desenvolvimento do “ki”
Não é preciso dizer que o combate do budô não é uma abstracção. O seu objectivo é procurar a eficácia. O aprofundamento do combate através do “ki” permite, por um lado, aumentar a eficácia e, por outro, praticar a longo prazo, e até mesmo durante toda a vida. No kendô, não é raro encontrar mestres que praticam até à véspera da sua morte dando mostras de grandes capacidades. Na arte marcial de mãos vazias, por exemplo no karatê, é raro encontrar um mestre que pratique o combate depois dos 60 anos.
No entanto, numa disciplina como o taikiken, em que o exercício do “ki” se situa no centro, o falecido K. Sawai praticou o combate concreto de mãos vazias com capacidades muito elevadas até perto dos 80 anos.
Penso que o trabalho sobre o “ki” está presente, explicita ou implicitamente, nas disciplinas do budô em que os praticantes podem percorrer um longo caminho melhorando as suas capacidades. No kendô o trabalho sobre o ki torna-se concreto a partir de um determinado nível e no taikiken desde o princípio. Em algumas escolas de jujutsu e de kenjutsu, não se insiste no trabalho do “ki” mas este está presente implicitamente.
Na tradição do budô, podemos distinguir dois métodos de desenvolvimento do “ki”, aparentemente diferentes mas no fundo complementares.
Alcançar o ki através do método do kata
O primeiro método baseia-se na formação técnica e na sua aplicação através da repetição.
É o método geralmente mais aplicado.
Por exemplo, para aprender o kendô, começa-se pelo manuseio correcto do shinai; para aprender o karatê, começa-se por aprender a forma precisa dos socos e dos pontapés. Não se trata de desferir o golpe de qualquer maneira. Em combate, não se pode obter um “ippon” se não se desferir o golpe correctamente.
Treina-se para conseguir obter a capacidade de realizar combates de nível superior com uma técnica magnífica.
Se analisarmos hoje as técnicas de kendô recomendadas, podemos classificar um determinado número de modelos técnicos a aprofundar. Estes modelos representam uma forma de ideal técnico e procura-se assimilá-los. Podemos dizer que, na realidade, os kendokas praticam o jigeiko tendo estes modelos que lhes servem de critério sobre a forma boa ou má de realizar um combate. O mesmo se aplica aos karatekas.
Apesar de no kendô estes modelos não serem classificados sob a forma de katas, podemos considerar que se trata de katas implícitos ao combate do kendô. Eles são muito diferentes dos “Nihon kendo gata”.
Da mesma forma, no karatê praticam-se as técnicas de combate directamente utilizáveis: os encadeamentos técnicos, os deslocamentos... Quase que se pode codificar um conjunto de gestos úteis e necessários para as formas do combate que tem lugar todos os dias. Quase que é possível criar katas com estes gestos, mas obter-se-ão katas diferentes dos katas “tradicionais”. Podemos dizer a mesma coisa do judô.
Em qualquer caso, não se treina o combate de qualquer forma. Treina-se tendo um modelo que se aproxima de uma determinada perfeição. Se se fizerem mil suburis, trata-se de repetir o movimento mil vezes na tentativa de se aproximar de um golpe perfeito.
Desta forma, quando treinamos repetindo uma técnica com o seu modelo idealizado, trata-se do método do kata no sentido lato do termo. A razão pela qual não dizemos que é o método do kata é o facto de normalmente se atribuir os katas à tradição. Mas quando se analisa o dinamismo inerente à génese dos katas, constata-se que no momento em que nasce um kata, cada um dos katas foi praticado como se praticam actualmente técnicas úteis, necessárias, e até mesmo indispensáveis para a formação das capacidades técnicas em combate. Não se trata de todo de um cerimonial gestual cujo desfasamento temos de justificar com a prática do combate concreto. Por isso, sem ser necessário nomeá-lo, trata-se do método do kata no sentido lato do termo que é aplicado no kendô ou no karatê.
Não basta fazer um único movimento perfeito, é necessário fazê-lo em situação de combate frente ao adversário. O jigeiko é um processo de assimilação dos elementos necessário para realizar o combate mais perfeito. Não se podem fazer combates bons por acaso.
Quando se consegue fazer combates satisfatórios, isso acontece porque se conseguiu sentir uma espécie de plenitude marcando o “ippon”. Nesta caso, criou-se, antes do golpe, um instante vulnerável no adversário pois conseguiu-se perturbar a sua guarda e o seu espírito. O ataque concentrou-se apenas no vazio do adversário, enquanto que o atacante estava cheio de energia, o que é produzido pela postura correcta do corpo, que desloca o sabre num trajecto correcto. No combate do karatê, é possível compreender esta situação substituindo o sabre pelo soco ou o pontapé.
É nesta situação que se pode sentir uma plenitude. Neste caso, isso acontece porque, mesmo sem se estar consciente disso, foi-se guiado pela sensação de qualquer coisa, agiu-se entregando-se a essa sensação. No momento do golpe, teve-se uma sensação de fusão com esta qualquer coisa. É a sensação do “ki”. Esta está presente na sensação de execução técnica perfeita durante o combate. Ela não só está presente como é tecnicamente modulada.
Ao praticar os katas, envolvemo-nos nesta sensação modulada sob a forma técnica.
Quando se estudam os katas clássicos, eles incluem os elementos necessários para atingir um estado de combate superior.
Muitos katas foram deformados durante a transmissão. Mas um kata, no momento em que é formado, mostra um estado idealizado das técnicas concretas de formação para o combate. O estado idealizado da técnica corresponde ao nível mais elevado de uma técnica, aquele em que se fundem a técnica corporal e o estado de espírito. O “ki” deve circular aí naturalmente. Podemos dizer que utilizá-lo desta forma na técnica corresponde a um princípio energético. Se um gesto técnico é perfeito, é porque está em harmonia com o princípio da eficácia que modula o “ki” sob a forma técnica. A forma perfeita de uma técnica sem eficácia não faz sentido, tal como não existe um sabre soberbo que não corta. De certa forma, toda a perfeição técnica contém o princípio da eficácia.
Vimos que o termo “ki” cobre sensações vagas e muito vastas. Nós utilizamos o “ki” no budô modulando-o sob a forma técnica.
Dizia-se a propósito de um mestre:
“Quaisquer que sejam os seus gestos, eles constituem uma técnica perfeita.”
Isso exactamente porque ele era capaz de seguir o “ki” de maneira não formal mas profundamente técnica. Tinha conseguido integrar tão bem a técnica que os seus gestos estavam conformes ao princípio subjacente das técnicas, no sentido lato do kata. É a isso que chamamos ir para além da forma aprendendo a forma: ir para além do kata penetrando profundamente no kata.
O kata mostra um modelo técnico do combate elaborado até uma forma de perfeição que nos convida e nos guia até ao topo. O kata apoia-se então num sistema em que o saber se situa numa posição elevada e os praticantes procuram atingi-lo. A forma técnica é um meio de ascensão pois não é o fim em si mesmo. O objectivo do kata é ir para além do kata.
Quando se repara no que se passa no nosso espírito durante um treino assíduo em que se procura adquirir uma técnica melhor, deparamos com a imagem do nosso mestre, daquele que nos mostrou ou ensinou a mesma. Os nossos gestos não estão associados à imagem da perfeição representada pelo nosso mestre, sobretudo quando treinamos sozinhos?
No processo de treino, esforçamo-nos por fazer tão bem como os mais experientes, como o mestre, pois desejamos ultrapassá-lo, vencê-lo. Quanto maior o peso desta imagem, mais ela nos persegue. O processo do treino consiste em lutar contra esta imagem: a repetição.
Este encadeamento psicológico é característico da aplicação do método do kata.
Uma melhor compreensão da lógica inerente ao método do kata e da sua ligação ao “ki” permite-nos avançar na prática do budô. Para tal, é indispensável saber observar e tratar os katas sob um ângulo diferente. O kata não é uma simples codificação técnica, não é um molde, nem uma cerimónia, nem um combate imaginário...
O kata é um método que exige algumas chaves para se desencadear plenamente. Vou desenvolver melhor esta ideia posteriormente.
O método energético
O segundo método traça um caminho quase inverso. O seu objectivo desde o início é o reforço do que veicula o princípio da eficácia: o “ki”. Eu diria que este método tem como objectivo reorganizar o sistema sensorial para que o corpo funcione espontaneamente com uma melhor regulação energética. Se o primeiro se baseia nas formas técnicas elaboradas até uma perfeição, o segundo apoia-se directamente no sistema sensorial inerente às técnicas gestuais da mais elevada eficácia.
Por isso, segundo este método, a técnica deve surgir espontaneamente a partir da sensação do “ki”. Ela não se baseia na aprendizagem específica das técnicas como o método do kata. Se existe uma elaboração técnica, ela virá depois de se dominar suficientemente o princípio da eficácia: o “ki”. O taikiken, que tem origem no método chinês do yi chuan, é um exemplo típico disso.
No que se refere ao sabre, mesmo para um método que se situa no lado oposto do método do kata e tem por objectivo a formação directa para o combate através da aquisição de um elemento mental e energético essencial, é obrigatório um mínimo de domínio técnico para saber utilizar a capacidade de corte do sabre.
O método de Hirayama Gyozo (1759-1828) é um bom exemplo disso pois a aprendizagem técnica está aí limitada ao mínimo. O seu método consiste numa única técnica. Um exercício a dois em que um ataca com um shinai comprido um adversário que traz uma protecção na cabeça e está armado com um shinai curto de 40 cm. Este último deve atacar para desferir um golpe no peito do primeiro, com a intenção de o trespassar, isto independentemente dos golpes que receber ao aproximar-se. Hirayama Gyozo escreveu numa das suas obras Kensetsu (Explicação do sabre):
“O objectivo da arte do sabre é matar o inimigo. O essencial é fazer passar a intenção de matar através do peito do adversário.”
A escola de Hirayama Gyozo chama-se Sinkanryu ou Shinnukiryu (a escola de trespassar pelo espírito ou a escola de trespassar pelo essencial, segundo os ideogramas).
De acordo com Hirayama Gyozo, se o nosso espírito trespassar o adversário, somos vencedores e é o método mais seguro e eficaz no combate real com o sabre. Considero-o um trabalho energético cujo objectivo é reforçar o espírito da forma mais directa. A simplicidade deste treino é a repetição de um único gesto, o que é comparável ao exercício aparentemente simples de ficar de pé e imóvel em “ritsuzen” (meditação em pé).
No entanto, com a postura imóvel do ritsuzen treina-se o espírito para criar uma disposição mental e física para derrotar o adversário, qualquer que ele seja. No combate com o sabre, é preciso utilizar correctamente o mesmo, razão pela qual o exercício simples dos suburis estava na base do método de Hirayama Gyozo. O seu método consiste neste gesto simples e em reforçar o que é mais fundamental no combate. Caracterizo-o então como um método cujo objectivo é reforçar de forma directa e simples o essencial do aspecto energético: o “ki” do combate.
Na tradição do sabre, um método energético é aplicado com mais frequência em paralelo ao método dos katas ou no seguimento deste.
Tomarei como exemplo dois mestres célebres do século XIX, Shirai Toru (1783 até 1845) e Yamaoka Tesshu (1836-1888), que seguiram este caminho. Os problemas com que estes dois praticantes foram confrontados são incontornáveis para qualquer reflexão sobre o método das artes marciais japonesas. Durante a segunda metade da sua vida, Shirai Toru dominava os seus adversários através da estranha força que emanava do seu sabre. Diz-se que a ponta do seu bokken (sabre de madeira) desenhava um círculo luminoso. Antes de atingir este nível, encontrou um obstáculo que só conseguiu ultrapassar à custa de muitos anos de treino e de meditação ascética. Este método, o “rentan”, baseia-se principalmente num trabalho energético que corresponde em grande parte ao qi gong marcial de hoje. Segundo Shirai Toru, o “rentan” é o único método concreto para atingir o nível superior da via do sabre.
Yamaoka Tesshu atingiu também um nível extraordinário no sabre; baseou-se na prática da meditação. Era pobre e, perto dos trinta anos, vivia numa casa em mau estado. Tinha recebido a alcunha de Tetsu [Tesshu?], o esfarrapado, ou também Tetsu [Tesshu?], o demónio do dojo. Vários dos seus amigos contam que de noite se ouviam os ratos no tecto da casa. Mas assim que Tesshu começava o zazen, o seu “ki” enchia o espaço e os ratos deixavam de fazer barulho, sendo que alguns até caiam das traves sobre as quais corriam. Vários anos depois, quando Tesshu começava o zazen, os ratos deixavam de correr e desciam para andar à sua volta. Não sei se esta história é verdadeira.
Em qualquer caso, existem vários testemunhos sobre a força do “ki” de Tesshu. Takano Sazaburo (1862-1950), um dos maiores mestres do kendô do início do século, deu o seguinte testemunho:
“Durante o treino, o mestre deixava que os alunos lhe desferissem golpes, mas eles nunca conseguiam ter a sensação de lhe tocar verdadeiramente. Quando tentava desferir-lhe um golpe forte, ficava sempre com a ponta do shinai do mestre na minha garganta... A atitude do Mestre era semelhante à de uma bola que nunca se pode fazer cair.
Ele tinha uma agilidade insondável, pois essa agilidade continha uma força de aço.
É por isso que durante o treino, mesmo desferindo o golpe no meio da sua cabeça, nunca conseguia sentir que lhe tinha tocado. Todos eram empurrados pelo seu ki... Mesmo quando a ponta do seu shinai ficava a trinta centímetros de mim, por um pequeno movimento de ponta, ficava sempre com a sensação de ter recebido um tsuki (golpe). O mestre não manejava o sabre com as mãos mas sim com o seu centro de energia... Aconteceu-me um dia receber um golpe de sabre muito leve e não ter sentido nada no momento. Mas ao chegar a casa tive uma sensação estranha, como se a minha garganta tivesse sido furada e o ar circulasse por aí. Esta sensação estranha continuou durante dois dias.”
Se estes dois grandes mestres puderam transformar radicalmente a qualidade do seu sabre, um através do rentan e o outro através do zazen, podemos pensar que estas práticas os ajudaram a reorganizar a forma de sentir e de agir que serve de base à técnica do sabre. Do ponto de vista prático, a pessoa que treina com este método não pensa necessariamente que começou uma reorganização. Subjectivamente, sentirá uma melhoria moral ou, de acordo com as suas crenças, uma iluminação ou uma purificação do corpo e do espírito... Mas o que é comum é provavelmente a forte sensação do “ki”.
Se a meditação influenciou a prática do sabre japonês, não o fez enquanto filosofia especulativa, mas fundamentalmente através da prática corporal do zazen. Penso que, pelo menos no início, a meditação suscitou o interesse dos guerreiros do período das guerras feudais pelo seu lado pragmático.
Conforme disse mais acima, uma particularidade do budô consiste no facto de, ao desenvolver a fundo o pragmatismo, este começar a confundir-se com a moral e a filosofia. Mesmo se a filosofia do budô é intrigante a nível intelectual, discutir a sua filosofia não ajudará de todo a compreender o budô.
O método do “rentan”, tal como o da meditação, tem por objectivo desenvolver o essencial do budô sem passar pela aprendizagem de técnicas específicas. Mas na arte do sabre, que exige um manuseio e trajectos precisos, este método só pode ser aplicado depois de se ter dominado um mínimo de técnica. Pois mesmo tendo adquirido um domínio energético e uma percepção precisa da acção em combate, os nossos gestos não podem ser transpostos com eficácia se o nosso sabre não seguir os trajectos correctos. Mesmo com uma força muito grande, o sabre não corta se a lâmina não estiver apontada na direcção correcta.
Enquanto que na arte do combate de mãos vazias se trata de golpear e não de trespassar com uma lâmina, sendo possível dar um golpe eficaz sem a precisão que é necessária com a lâmina do sabre. Na medida em que é possível produzir um impacto suficiente, o golpe é eficaz independentemente do ângulo de ataque.
Conclusão
Para desenvolver a prática qualitativa do budô ultrapassando barreiras culturais, penso que devemos ter a abertura de espírito que nos permita compreender que existem outros sistemas de pensamento noutras culturas. É preciso, ao mesmo tempo, evidentemente, enfrentar as técnicas do budô. Devemos ver nas mesmas um dos elementos essenciais pelos quais é constituído o budô. Tenho a certeza de que a chave do budô está no nosso corpo, o que significa que está para além das barreiras culturais. Penso que se trata do “ki”, mas não se trata do “ki” em geral. Na prática do budô, estamos perante o “ki” modulado sob a forma técnica, sem o qual o budô não pode existir.
Analisei e apresentei de forma breve dois métodos clássicos cujo objectivo é desenvolver o “ki”, seja através da prática dos katas no sentido lato, seja directamente através do treino energético.
A história do budô, em particular a do kendô, mostra que estes dois métodos são convergentes.
Pôr em evidência o trabalho sobre o “ki” permite não só concretizar a prática do budô como também abrir a possibilidade de uma prática a longo prazo.
O budô pode contribuir dessa forma para o bem-estar e o reforço vital. De acordo com a minha análise, a sensação do “ki” está na base do budô. Ela também pode ser sentida para além das barreiras culturais, abrindo assim perspectivas acessíveis fora da cultura budista e xintoísta japonesa, sem deixar de conservar o que constitui a especificidade do budô.
Kenji Tokitsu
Documento de arquivo escrito em Março de 1998 por Kenji Tokitsu publicado em Numéro spécial du Bulletin ShaolinMon*
ISSN 1261758
X Retranscrição do texto pronunciado no dia 14 de Março de 1998 no Taikai de Paris pelo Mestre Kenji Tokitsu
Tradução para português por Margarida Dias, aluna do Professor Inacio Cristo Dias / Jisei Dojo