Crónicas do Mestre Kenji Tokitsu | Reflexão sobre o Tai Chi Chuan

Relativamente ao meu último livro “Tai-chi-chuan", origine et puisance d’un art martial" (Ed. Désiris) que publiquei em 2010, recebo muitas questões relativas a esta prática.
Penso que será mais sensato aborda-las na rubrica de uma crónica. Com efeito, concebi esta obra como a introdução do meu próximo livro que tem por objecto uma reflexão sobre a parte prática: a aplicação de um método.
O conceito do "tai-chi" ultrapassa o conceito do "tai-chi-chuan"
Na minha obra “Tai-chi-chuan”, origine et puisance d’un art martial (Ed. Désiris), abordei algumas questões que me pareciam fundamentais para a prática do tai-chi-chuan. Apoiei-me sobre um estudo histórico e sobre a minha prática pessoal.
A minha interrogação era de ordem intelectual, mas suportada pela prática corporal visto que, desde há muito tempo que coloco esse género de questão: “O tai-chi-chuan é verdadeiramente uma arte marcial?”
Se for o caso, é necessário que compreenda porquê e como é possível formar e cultivar as capacidades gestuais em velocidade e força exercitando-nos lentamente e com leveza.
Se existe um método que parece mágico, torna-se necessário que o possa compreender para que o possa praticar. Meu modo de pensar é simples e directo. No decurso das minhas pesquisas rejeitei as ideias que foram formuladas mas que não podiam resistir a provas práticas: formação de capacidades para combate.
Na minha experiência limitada, pude constatar que se um perito em tai-chi-chuan for muito forte em Tui-shou, não é por essa razão capaz de levar a bom termo um combate do estilo karaté ou do estilo boxe. Este tipo de experiência não me convenceram, tive de prosseguir a minha reflexão.
Na série de artigos que escreverei no meu site, vou esboçar a minha segunda etapa de reflexão que espero publicar durante o ano de 2012. Vou paralelamente apresentar algumas imagens relativas a estes textos na internet.
Retomando algumas reflexões realçadas na minha obra acima referida, desejava explorar o domínio da prática corporal de maneira mais geral. Evitarei assim a repetição do que já foi dito, sobretudo em relação a considerações históricas. Retomarei somente algumas passagens sobre as quais me apoiarei para assegurar uma coerência razoável. Se alguns dos leitores pensam encontrar alguma falta de informação a este respeito, convido-os a lerem aquela obra.
O objectivo desta série de artigos consiste em avançar sobre a reflexão para uma melhor prática.
Lembremo-nos de uma passagem que escrevi naquela obra:
Na sua obra Yichuan xué (“estudo do yichuan”), Hàn Xingqiao escreveu:
“No antigo texto Dàode jing, encontra-se a seguinte passagem: “O tai-chi, Origem do Universo, divide-se em dois elementos contraditórios e complementares, o yin e o yang, que se dividem em quatro produzindo oito fenómenos; depois em oito vezes oito, produzindo assim os sessenta e quatro fenómenos que se estendam até ao infinito...”
Para nós, esta frase indica a orientação do zhangzhuan onde integramos a totalidade do corpo que se tornará no tai-chi caótico. É assim que o exercício de zhangzhuan se apoia no princípio do tai-chi...”. Hàn Xingqiao explica por outro lado que o zhangzhuan, exercício fndamental do yi-chuan, visa realizar o princípio do tai-chi...
Existem numerosas técnicas apelidadas de taikyoku (que é a palavra tai-chi pronunciada em japonês) nas diferentes escolas de sabre e doutras artes marciais japonesas. Todas elas visam mais ou menos na realização do conceito do tai-chi sob a forma técnica como sendo a integração dinâmica de dois elementos complementares, o yin e o yang, formador de todas as técnicas originais; é o taikyoku. A ideia do tai-chi não está portanto reservada ao tai-chi-chuan.
O que quer dizer concretamente tai-chi? Podemos reflectir sobre isso com um exemplo simples.
Dilatando horizontalmente o peito (a parte yin), a parte oposta que são as costas (a parte yang) podem retrair-se; se contrairmos o peito (à frente), a parte dorsal alarga-se. Podemos notar o mesmo tipo de mobilidade do tronco no sentido vertical como um acordeão indo para cima e para baixo e depois para a frente e para trás; o tronco pode-se alongar e depois contrair. Podemos fazer o mesmo mas de maneira oblíqua. Estas complementaridades do movimento do tronco inscrevem-se no princípio do tai-chi.
Se concebermos o corpo como um corpo de Pinóquio feito em madeira, podemos constatar que o tronco, sendo formado por um único bloco, se encontra privado de movimentos flexíveis. Evidentemente, ele pode rodar da direita à esquerda, para a frente e para trás e para baixo e para cima, mas são os únicos limites que lhe atribuímos?
Ora, o nosso corpo vivo tem contudo diversas outras possibilidades dinâmicas. Se o registo dos nossos movimentos nos parece limitado, é justamente e muito simplesmente por causa da nossa maneira de conceber o nosso corpo. Não teremos nós uma espécie de limite formado pelo nosso preconceito onde os membros se movimentam enquanto que o tronco não se mexe ou mexe muito pouco?
A partir do momento que formamos nosso pensamento e nos convencemos que o nosso tronco não pode mexer “como os membros mexem”, as possibilidades da sua mobilidade serão sistematicamente postas de lado na nossa consciência, tal como o tronco de madeira do corpo do Pinóquio. Imaginamos que não podemos mover nosso tronco de outra maneira simplesmente porque não sabemos “como” mexe-lo!
No entanto, o tronco deve mexer mas de uma maneira diferente da dos membros. Ele é também capaz de produzir uma força bem mais importante áquela que estamos habituados como por exemplo, a simples força produzida pelos braços e pelas mãos.
Os métodos antigos souberam desde há muito tempo a importância das actividades dissimuladas no corpo assim com as maneiras de cultivar e desenvolver as capacidades dinâmicas acima do normal.
Com o corpo do Pinóquio, não podemos exercemo-nos no tai-chi-chuan, uma vez que apenas os membros e o pescoço mexem ficando o tronco imóvel pois que é feito de apenas um bloco.
Ora este é o ponto essencial que muitas vezes se encontra dissimulado no ensino de massas. Isso poderá ser um dos segredos de eficácia do tai-chi-chuan que jamais foi difundido.
Reflexões sobre o método de artes marciais (15-06-11)
Tomemos um exemplo: para cultivar e aumentar a força de um soco, temos o hábito de treinar no saco, com halteres, com elásticos ... Com estes exercícios treinamos principalmente os músculos que parecem directamente ligados ao gesto de socar. Pensamos que se trata de um exercício racional.
De acordo com a sabedora antiga:
“Para poder exercer uma força importante com a mão, não é a parte mais próxima da mão que se torna necessário reforçar, mas sim aquela mais afastada. Assim a força da mão deve ser alimentada a partir da coluna vertebral extraindo a força desde a zona dos pés, pernas, nádegas ...”.
O método do tai-chi-chuan e do (ritsu-zen) zhuangzhan inscrevem-se neste registo.
Além disso, observando um corpo que parece estar totalmente descontraído, nomeadamente ao nível dos braços, o de um perito é capaz de desenvolver uma força espantosa. Isto porque ele é capaz de mobilizar um conjunto de forças produzidas nas zonas mais afastadas da mão e do braço: como das costas, pernas ... Este modo de activação muscular é diferente daquela que estamos habituados a conceber na lógica desportiva.
Assim, não é porque o perito tenha podido manifestar a força do qi (ki), mas porque ele consegue manifestar a força de uma série de músculos pouco utilizados na prática habitual. Na teoria do kikô: sempre que o ki aumenta, a força muscular aumenta e esta activação muscular corresponde a uma activação do qi (ki).
Para atingir esse nível, como nos devemos exercitar? Este é um dos temas principais desta série de textos.
Qual a via, qual o método?
Escrevi na página 117 do meu livro:
“ A forma do tai-chi-chuan que pratico evoluiu relativamente aquela que aprendi. Comparando as duas, não sinto qualquer remorso.
Felizmente, ou infelizmente não tive ainda ocasião de modificar meu ponto de vista fundamental, embora esteja sempre pronto a recoloca-lo em questão, assim como a minha prática, se descobrir um método melhor, o que seria uma felicidade.”
Nesta frase precisei a minha posição em relação à pesquisa e à prática do método tai-chi-chuan. É portanto inútil perguntarem-me qual a corrente ou qual a escola do tai-chi-chuan a que pertenço. Pratico o meu método de tai-chi-chuan considerando-o de maneira relativa com todas as formas de práticas que conheço.
Não é portanto necessário repetir aquilo que já escrevi naquele livro. Vou simplesmente desenvolver algumas reflexões complementares que darão mais esclarecimentos.
Na minha última obra, insisti na necessidade do trabalho da força que está aparentemente ausente na maior parte das formas actuais do tai-chi-chuan.
Que significa uma qualificação “autêntica”?
O tai-chi-chuan pode-se traduzir por : “o boxe (chuan) com o princípio do tai-chi (integração do yin e do yang)”.
Penso que é a definição apropriada do tai-chi-chuan.
Se questionarem sobre a autenticidade do tai-chi-chuan que praticam, penso que seria mais lógico que se referissem a esta definição em vez de à pertença a uma determinada escola ou à ligação a um nome de um mestre que vimos apenas uma vez ou muitas vezes, mesmo regularmente.
Para aqueles que procuram o verdadeiro sentido da prática, o importante deve ser o grau de realização do princípio do tai-chi em vez da ligação ao nome de um grupo ou de alguma instituição.
O que conta verdadeiramente não é o que chegamos a fazer das nossas capacidades graças ao método que praticam? Somente a vossa qualidade prática e o vosso nível contam.
Penso pessoalmente que o valor de um método se exprime pelas qualidades daqueles que o praticam mas também das perspectivas que ele pode fazer ver a cada um: mesmo um campeão olímpico não consegue saltar 10 metros de uma só vez, em compensação se houver uma escada, cada um pode subir cada degrau um a um para atingir o topo. O equivalente à escada, é o método. Daí o provérbio: “Mesmo um caminho que nos leva a mil lugares começam com um passo”.
Se compararmos e examinarmos as diferentes formas modernas de tai-chi relativamente à forma antiga, podemos constatar que um grande número de modificações foram introduzidas. Atrevo-me a dizer que todas as formas e técnicas modificadas tornaram-se “autênticas” desde que tenham sido realizadas de acordo com o princípio do tai-chi. As diferentes escolas do tai-chi-chuan desenvolveram-se desta maneira.
Podemos comparar e examinar as diferentes formas modernas do tai-chi em relação ao tai-chi-Chen ou o boxe de Chen. Podemos constatar ao mesmo tempo similitudes e diferenças, visto que um grande número de modificações foram produzidas em relação à forma antiga.
Atrevo-me a dizer que todas as formas e técnicas modificadas se tornaram “autênticas” desde que tenham sido realizadas de acordo com o princípio do tai-chi. As diferentes escolas de tai-chi desenvolveram-se dessa forma.
Examinemos de perto.
Deformação ou criação?
Vimos no meu livro que Yang Luchant (1799-1872) formou o tai-chi-chuan a partir do boxe dos Chen que teve conhecimento a partir de Chen Changxing (1771-1853). Ele reorganizou o boxe dos Chen segundo um princípio que se tornou mais tarde o princípio do tai-chi. Ele modificou portanto o boxe dos Chen.
Com efeito, nessa época, aos olhos dos mestres do boxe Chen, o tai-chi-Yang nada mais era que uma deformação do seu boxe.
Que pensariam eles hoje em dia?
Toda a autenticidade é criada graças a uma deformação, visto que neste preciso caso, devemos compreender que a palavra deformação significa “mudar a forma mantendo o princípio”. Assim, de acordo com esta lógica, quase todas as formas modernas do tai-chi-chuan que são consideradas como autênticas não serão elas produtos de deformações?
Wu Yuxiang (1812-1880), fundador do tai-chi-chuan da Escola Wu foi o primeiro aluno de Yang Luchant. O tai-chi Yang e o tai-chi Wu são duas escolas diferentes que têm afinidades.
Wu Yuxiang era íntimo do seu mestre ao ponto,como pudemos constatar, que foi graças a ele que o tai-chi de Yang Luchant se tornou conhecido em Pequim, e depois no resto do mundo. Imagino que os dois eram muito ligados. Então porque Wu Yuxiang, tão próximo do seu mestre, se afastou dele? Porque razão acabou ele por fundar a sua própria escola em lugar de continuar com a do seu mestre?
Se ele vivesse ainda nos nossos dias, poderia declarar que era o discípulo directo e o mais próximo do fundador, e portanto o representante autêntico da escola Yang.
No entanto, ele formou a sua própria escola. Ora quem nos nossos dias poderá dizer que a escola Wu é uma deformação da escola Yang?
Penso que se Wu Yuxiang pode produzir modificações ao que Yang Luchant lhe comunicou, foi porque tinha razões pessoais para o fazer, de acordo com a sua maneira de compreender e de praticar o princípio do tai-chi. Não foi por mero capricho que ele introduziu modificações, mas em função do seu modo de aplicar o princípio.
É possível que Wu Yuxiang tenha pensado: “é preciso que faça deste modo e não de outra maneira, pois compreendo o princípio desta única maneira”. De acordo com as suas respectivas idades, Wu produziu as modificações durante a vida do seu mestre.
Não se trata de liberdade no seu preciso termo?
Este facto obriga-me a pensar até que ponto nos encontramos aprisionados ao sistema em nome da “prática autêntica”.
Um precursor é como um navegador solitário num oceano onde deve, não obstante, avançar de acordo com o seu próprio julgamento racional reforçado pela sua coragem, mesmo que não consiga ver ainda o horizonte. Esta força está completamente ausente daqueles que não progridem senão por um caminho já definido pela instituição. Estes últimos avançam com as referências já estabelecidas por outros, ao invés dos primeiros que avançam estabelecendo eles próprios as referências e as suas regras próprias.
Penso que existem várias formas “autênticas” do “tai-chi” a partir do momento que se aplica o princípio do tai-chi. Nesta lógica, algumas passagens técnicas podem ser diferentes de uma escola de tai-chi-chuan “autêntica” para outra escola. Isso não deverá constituir qualquer problema para aqueles que praticam o tai chi de acordo com o seu princípio fundamental, mas provocará seguramente problemas aqueles que praticam o tai-chi unicamente de maneira a se manterem de acordo com as regras da instituição.
Esta situação mostra a tendência dominante na prática do tai-chi-chuan de nossos dias, como em todas as outras actividades.
A prática pela instituição ou pelo princípio?
Toda a instituição tem tendência a exercer o poder para se impor.
É aí que podemos encontrar problemas, pois seu fim não reside na procura do desenvolvimento de um princípio mas somente em cuidar de se perpetuar.
Por exemplo, podemos comparar determinadas sequências do tai-chi-Chen com sequências do tai-chi –Yang.
As técnicas com os pés em salto para o primeiro caso efectuam-se para o segundo por uma sucessão de duas técnicas de pés separadas pondo de cada vez os pés no chão. Um técnica de pé circular em salto para o primeiro caso torna-se no segundo caso em duas técnicas de pés mudando lentamente a direcção e pondo de cada vez o pé no chão a que se segue então outra técnica com o pé.
Mesmo aqueles que estudaram as duas formas não são forçosamente capazes de as comparar, porque como as estudam e praticam unicamente de acordo com os códigos ou sistemas de regras sem ultrapassar o limiar que permitir o distanciamento necessário para reflectir, que não podem coloca-las sob um olhar crítico.
Para aqueles que podem tomar essa distância objectiva, a alteração ente a primeira e a segunda forma é bastante visível, pois se produz seguindo “uma lógica”. Podemos interpretar isto afirmando que: “a segunda é uma forma de adaptação para pessoas menos dinâmicas”, ou: “ a segunda é uma criação de uma nova série técnica”.
Para aqueles que não tem este conhecimento, nem esta visão, as duas formas são simplesmente diferentes.
Para aqueles que estão aptos a comparar as duas formas objectivamente, não podem pretender que a segunda forma seja falsa em relação à primeira, mas somente dizer que a segunda apresenta um outro valor técnico.
Nesta medida onde o princípio do tai-chi é aplicado na modificação, cada forma nova pode tornar-se do tai-chi autêntico. Penso que este é um ponto sobre o qual nos melindramos relativamente à lógica habitual que encontramos: “se mudamos uma forma autêntica, ela não pode mais ser considerada autêntica, sendo portanto falsa”.
Com efeito, numerosas escolas e diversos estilos de tai-chi-chuan modernas foram formadas modificando o modelo de partida, para se tornarem autênticas por sua vez na medida em que elas aplicavam o princípio do tai-chi. De certa maneira poderia dizer que todas as formas de tai-chi são autênticas, na medida em que elas foram modificadas respeitando o princípio do tai-chi.
Porque o princípio do tai-chi se encontra vivo, portanto móvel e dinâmico. Apesar do espírito ocidental se reclamar um modelo de “liberdade” e de “racionalidade” parece-me que muitas vezes se encontra aprisionado num sistema rígido de regras entorpecidas.
Muitas pessoas praticam o tai-chi-chuan colocando a importância sob a forma de um modelo normalizado ou sob regras técnicas. Bem poucos praticam interessando-se no princípio que constitui o próprio fundamento da técnica. Os primeiros ficarão satisfeitos por um certa conformidade ao sistema da escola que escolheram, os segundos à compreensão da multiplicidade de possibilidades técnicas aferentes a um princípio.
Aqueles que se prendem à importância de uma carapaça técnica interessam-se pelas regras, e aqueles que procuram o essencial ligam-se ao princípio que é a origem da criação.
Autor: Kenji Tokitsu
Tradução para Português: Luís Silva Carvalho
Penso que será mais sensato aborda-las na rubrica de uma crónica. Com efeito, concebi esta obra como a introdução do meu próximo livro que tem por objecto uma reflexão sobre a parte prática: a aplicação de um método.
O conceito do "tai-chi" ultrapassa o conceito do "tai-chi-chuan"
Na minha obra “Tai-chi-chuan”, origine et puisance d’un art martial (Ed. Désiris), abordei algumas questões que me pareciam fundamentais para a prática do tai-chi-chuan. Apoiei-me sobre um estudo histórico e sobre a minha prática pessoal.
A minha interrogação era de ordem intelectual, mas suportada pela prática corporal visto que, desde há muito tempo que coloco esse género de questão: “O tai-chi-chuan é verdadeiramente uma arte marcial?”
Se for o caso, é necessário que compreenda porquê e como é possível formar e cultivar as capacidades gestuais em velocidade e força exercitando-nos lentamente e com leveza.
Se existe um método que parece mágico, torna-se necessário que o possa compreender para que o possa praticar. Meu modo de pensar é simples e directo. No decurso das minhas pesquisas rejeitei as ideias que foram formuladas mas que não podiam resistir a provas práticas: formação de capacidades para combate.
Na minha experiência limitada, pude constatar que se um perito em tai-chi-chuan for muito forte em Tui-shou, não é por essa razão capaz de levar a bom termo um combate do estilo karaté ou do estilo boxe. Este tipo de experiência não me convenceram, tive de prosseguir a minha reflexão.
Na série de artigos que escreverei no meu site, vou esboçar a minha segunda etapa de reflexão que espero publicar durante o ano de 2012. Vou paralelamente apresentar algumas imagens relativas a estes textos na internet.
Retomando algumas reflexões realçadas na minha obra acima referida, desejava explorar o domínio da prática corporal de maneira mais geral. Evitarei assim a repetição do que já foi dito, sobretudo em relação a considerações históricas. Retomarei somente algumas passagens sobre as quais me apoiarei para assegurar uma coerência razoável. Se alguns dos leitores pensam encontrar alguma falta de informação a este respeito, convido-os a lerem aquela obra.
O objectivo desta série de artigos consiste em avançar sobre a reflexão para uma melhor prática.
Lembremo-nos de uma passagem que escrevi naquela obra:
Na sua obra Yichuan xué (“estudo do yichuan”), Hàn Xingqiao escreveu:
“No antigo texto Dàode jing, encontra-se a seguinte passagem: “O tai-chi, Origem do Universo, divide-se em dois elementos contraditórios e complementares, o yin e o yang, que se dividem em quatro produzindo oito fenómenos; depois em oito vezes oito, produzindo assim os sessenta e quatro fenómenos que se estendam até ao infinito...”
Para nós, esta frase indica a orientação do zhangzhuan onde integramos a totalidade do corpo que se tornará no tai-chi caótico. É assim que o exercício de zhangzhuan se apoia no princípio do tai-chi...”. Hàn Xingqiao explica por outro lado que o zhangzhuan, exercício fndamental do yi-chuan, visa realizar o princípio do tai-chi...
Existem numerosas técnicas apelidadas de taikyoku (que é a palavra tai-chi pronunciada em japonês) nas diferentes escolas de sabre e doutras artes marciais japonesas. Todas elas visam mais ou menos na realização do conceito do tai-chi sob a forma técnica como sendo a integração dinâmica de dois elementos complementares, o yin e o yang, formador de todas as técnicas originais; é o taikyoku. A ideia do tai-chi não está portanto reservada ao tai-chi-chuan.
O que quer dizer concretamente tai-chi? Podemos reflectir sobre isso com um exemplo simples.
Dilatando horizontalmente o peito (a parte yin), a parte oposta que são as costas (a parte yang) podem retrair-se; se contrairmos o peito (à frente), a parte dorsal alarga-se. Podemos notar o mesmo tipo de mobilidade do tronco no sentido vertical como um acordeão indo para cima e para baixo e depois para a frente e para trás; o tronco pode-se alongar e depois contrair. Podemos fazer o mesmo mas de maneira oblíqua. Estas complementaridades do movimento do tronco inscrevem-se no princípio do tai-chi.
Se concebermos o corpo como um corpo de Pinóquio feito em madeira, podemos constatar que o tronco, sendo formado por um único bloco, se encontra privado de movimentos flexíveis. Evidentemente, ele pode rodar da direita à esquerda, para a frente e para trás e para baixo e para cima, mas são os únicos limites que lhe atribuímos?
Ora, o nosso corpo vivo tem contudo diversas outras possibilidades dinâmicas. Se o registo dos nossos movimentos nos parece limitado, é justamente e muito simplesmente por causa da nossa maneira de conceber o nosso corpo. Não teremos nós uma espécie de limite formado pelo nosso preconceito onde os membros se movimentam enquanto que o tronco não se mexe ou mexe muito pouco?
A partir do momento que formamos nosso pensamento e nos convencemos que o nosso tronco não pode mexer “como os membros mexem”, as possibilidades da sua mobilidade serão sistematicamente postas de lado na nossa consciência, tal como o tronco de madeira do corpo do Pinóquio. Imaginamos que não podemos mover nosso tronco de outra maneira simplesmente porque não sabemos “como” mexe-lo!
No entanto, o tronco deve mexer mas de uma maneira diferente da dos membros. Ele é também capaz de produzir uma força bem mais importante áquela que estamos habituados como por exemplo, a simples força produzida pelos braços e pelas mãos.
Os métodos antigos souberam desde há muito tempo a importância das actividades dissimuladas no corpo assim com as maneiras de cultivar e desenvolver as capacidades dinâmicas acima do normal.
Com o corpo do Pinóquio, não podemos exercemo-nos no tai-chi-chuan, uma vez que apenas os membros e o pescoço mexem ficando o tronco imóvel pois que é feito de apenas um bloco.
Ora este é o ponto essencial que muitas vezes se encontra dissimulado no ensino de massas. Isso poderá ser um dos segredos de eficácia do tai-chi-chuan que jamais foi difundido.
Reflexões sobre o método de artes marciais (15-06-11)
Tomemos um exemplo: para cultivar e aumentar a força de um soco, temos o hábito de treinar no saco, com halteres, com elásticos ... Com estes exercícios treinamos principalmente os músculos que parecem directamente ligados ao gesto de socar. Pensamos que se trata de um exercício racional.
De acordo com a sabedora antiga:
“Para poder exercer uma força importante com a mão, não é a parte mais próxima da mão que se torna necessário reforçar, mas sim aquela mais afastada. Assim a força da mão deve ser alimentada a partir da coluna vertebral extraindo a força desde a zona dos pés, pernas, nádegas ...”.
O método do tai-chi-chuan e do (ritsu-zen) zhuangzhan inscrevem-se neste registo.
Além disso, observando um corpo que parece estar totalmente descontraído, nomeadamente ao nível dos braços, o de um perito é capaz de desenvolver uma força espantosa. Isto porque ele é capaz de mobilizar um conjunto de forças produzidas nas zonas mais afastadas da mão e do braço: como das costas, pernas ... Este modo de activação muscular é diferente daquela que estamos habituados a conceber na lógica desportiva.
Assim, não é porque o perito tenha podido manifestar a força do qi (ki), mas porque ele consegue manifestar a força de uma série de músculos pouco utilizados na prática habitual. Na teoria do kikô: sempre que o ki aumenta, a força muscular aumenta e esta activação muscular corresponde a uma activação do qi (ki).
Para atingir esse nível, como nos devemos exercitar? Este é um dos temas principais desta série de textos.
Qual a via, qual o método?
Escrevi na página 117 do meu livro:
“ A forma do tai-chi-chuan que pratico evoluiu relativamente aquela que aprendi. Comparando as duas, não sinto qualquer remorso.
Felizmente, ou infelizmente não tive ainda ocasião de modificar meu ponto de vista fundamental, embora esteja sempre pronto a recoloca-lo em questão, assim como a minha prática, se descobrir um método melhor, o que seria uma felicidade.”
Nesta frase precisei a minha posição em relação à pesquisa e à prática do método tai-chi-chuan. É portanto inútil perguntarem-me qual a corrente ou qual a escola do tai-chi-chuan a que pertenço. Pratico o meu método de tai-chi-chuan considerando-o de maneira relativa com todas as formas de práticas que conheço.
Não é portanto necessário repetir aquilo que já escrevi naquele livro. Vou simplesmente desenvolver algumas reflexões complementares que darão mais esclarecimentos.
Na minha última obra, insisti na necessidade do trabalho da força que está aparentemente ausente na maior parte das formas actuais do tai-chi-chuan.
Que significa uma qualificação “autêntica”?
O tai-chi-chuan pode-se traduzir por : “o boxe (chuan) com o princípio do tai-chi (integração do yin e do yang)”.
Penso que é a definição apropriada do tai-chi-chuan.
Se questionarem sobre a autenticidade do tai-chi-chuan que praticam, penso que seria mais lógico que se referissem a esta definição em vez de à pertença a uma determinada escola ou à ligação a um nome de um mestre que vimos apenas uma vez ou muitas vezes, mesmo regularmente.
Para aqueles que procuram o verdadeiro sentido da prática, o importante deve ser o grau de realização do princípio do tai-chi em vez da ligação ao nome de um grupo ou de alguma instituição.
O que conta verdadeiramente não é o que chegamos a fazer das nossas capacidades graças ao método que praticam? Somente a vossa qualidade prática e o vosso nível contam.
Penso pessoalmente que o valor de um método se exprime pelas qualidades daqueles que o praticam mas também das perspectivas que ele pode fazer ver a cada um: mesmo um campeão olímpico não consegue saltar 10 metros de uma só vez, em compensação se houver uma escada, cada um pode subir cada degrau um a um para atingir o topo. O equivalente à escada, é o método. Daí o provérbio: “Mesmo um caminho que nos leva a mil lugares começam com um passo”.
Se compararmos e examinarmos as diferentes formas modernas de tai-chi relativamente à forma antiga, podemos constatar que um grande número de modificações foram introduzidas. Atrevo-me a dizer que todas as formas e técnicas modificadas tornaram-se “autênticas” desde que tenham sido realizadas de acordo com o princípio do tai-chi. As diferentes escolas do tai-chi-chuan desenvolveram-se desta maneira.
Podemos comparar e examinar as diferentes formas modernas do tai-chi em relação ao tai-chi-Chen ou o boxe de Chen. Podemos constatar ao mesmo tempo similitudes e diferenças, visto que um grande número de modificações foram produzidas em relação à forma antiga.
Atrevo-me a dizer que todas as formas e técnicas modificadas se tornaram “autênticas” desde que tenham sido realizadas de acordo com o princípio do tai-chi. As diferentes escolas de tai-chi desenvolveram-se dessa forma.
Examinemos de perto.
Deformação ou criação?
Vimos no meu livro que Yang Luchant (1799-1872) formou o tai-chi-chuan a partir do boxe dos Chen que teve conhecimento a partir de Chen Changxing (1771-1853). Ele reorganizou o boxe dos Chen segundo um princípio que se tornou mais tarde o princípio do tai-chi. Ele modificou portanto o boxe dos Chen.
Com efeito, nessa época, aos olhos dos mestres do boxe Chen, o tai-chi-Yang nada mais era que uma deformação do seu boxe.
Que pensariam eles hoje em dia?
Toda a autenticidade é criada graças a uma deformação, visto que neste preciso caso, devemos compreender que a palavra deformação significa “mudar a forma mantendo o princípio”. Assim, de acordo com esta lógica, quase todas as formas modernas do tai-chi-chuan que são consideradas como autênticas não serão elas produtos de deformações?
Wu Yuxiang (1812-1880), fundador do tai-chi-chuan da Escola Wu foi o primeiro aluno de Yang Luchant. O tai-chi Yang e o tai-chi Wu são duas escolas diferentes que têm afinidades.
Wu Yuxiang era íntimo do seu mestre ao ponto,como pudemos constatar, que foi graças a ele que o tai-chi de Yang Luchant se tornou conhecido em Pequim, e depois no resto do mundo. Imagino que os dois eram muito ligados. Então porque Wu Yuxiang, tão próximo do seu mestre, se afastou dele? Porque razão acabou ele por fundar a sua própria escola em lugar de continuar com a do seu mestre?
Se ele vivesse ainda nos nossos dias, poderia declarar que era o discípulo directo e o mais próximo do fundador, e portanto o representante autêntico da escola Yang.
No entanto, ele formou a sua própria escola. Ora quem nos nossos dias poderá dizer que a escola Wu é uma deformação da escola Yang?
Penso que se Wu Yuxiang pode produzir modificações ao que Yang Luchant lhe comunicou, foi porque tinha razões pessoais para o fazer, de acordo com a sua maneira de compreender e de praticar o princípio do tai-chi. Não foi por mero capricho que ele introduziu modificações, mas em função do seu modo de aplicar o princípio.
É possível que Wu Yuxiang tenha pensado: “é preciso que faça deste modo e não de outra maneira, pois compreendo o princípio desta única maneira”. De acordo com as suas respectivas idades, Wu produziu as modificações durante a vida do seu mestre.
Não se trata de liberdade no seu preciso termo?
Este facto obriga-me a pensar até que ponto nos encontramos aprisionados ao sistema em nome da “prática autêntica”.
Um precursor é como um navegador solitário num oceano onde deve, não obstante, avançar de acordo com o seu próprio julgamento racional reforçado pela sua coragem, mesmo que não consiga ver ainda o horizonte. Esta força está completamente ausente daqueles que não progridem senão por um caminho já definido pela instituição. Estes últimos avançam com as referências já estabelecidas por outros, ao invés dos primeiros que avançam estabelecendo eles próprios as referências e as suas regras próprias.
Penso que existem várias formas “autênticas” do “tai-chi” a partir do momento que se aplica o princípio do tai-chi. Nesta lógica, algumas passagens técnicas podem ser diferentes de uma escola de tai-chi-chuan “autêntica” para outra escola. Isso não deverá constituir qualquer problema para aqueles que praticam o tai chi de acordo com o seu princípio fundamental, mas provocará seguramente problemas aqueles que praticam o tai-chi unicamente de maneira a se manterem de acordo com as regras da instituição.
Esta situação mostra a tendência dominante na prática do tai-chi-chuan de nossos dias, como em todas as outras actividades.
A prática pela instituição ou pelo princípio?
Toda a instituição tem tendência a exercer o poder para se impor.
É aí que podemos encontrar problemas, pois seu fim não reside na procura do desenvolvimento de um princípio mas somente em cuidar de se perpetuar.
Por exemplo, podemos comparar determinadas sequências do tai-chi-Chen com sequências do tai-chi –Yang.
As técnicas com os pés em salto para o primeiro caso efectuam-se para o segundo por uma sucessão de duas técnicas de pés separadas pondo de cada vez os pés no chão. Um técnica de pé circular em salto para o primeiro caso torna-se no segundo caso em duas técnicas de pés mudando lentamente a direcção e pondo de cada vez o pé no chão a que se segue então outra técnica com o pé.
Mesmo aqueles que estudaram as duas formas não são forçosamente capazes de as comparar, porque como as estudam e praticam unicamente de acordo com os códigos ou sistemas de regras sem ultrapassar o limiar que permitir o distanciamento necessário para reflectir, que não podem coloca-las sob um olhar crítico.
Para aqueles que podem tomar essa distância objectiva, a alteração ente a primeira e a segunda forma é bastante visível, pois se produz seguindo “uma lógica”. Podemos interpretar isto afirmando que: “a segunda é uma forma de adaptação para pessoas menos dinâmicas”, ou: “ a segunda é uma criação de uma nova série técnica”.
Para aqueles que não tem este conhecimento, nem esta visão, as duas formas são simplesmente diferentes.
Para aqueles que estão aptos a comparar as duas formas objectivamente, não podem pretender que a segunda forma seja falsa em relação à primeira, mas somente dizer que a segunda apresenta um outro valor técnico.
Nesta medida onde o princípio do tai-chi é aplicado na modificação, cada forma nova pode tornar-se do tai-chi autêntico. Penso que este é um ponto sobre o qual nos melindramos relativamente à lógica habitual que encontramos: “se mudamos uma forma autêntica, ela não pode mais ser considerada autêntica, sendo portanto falsa”.
Com efeito, numerosas escolas e diversos estilos de tai-chi-chuan modernas foram formadas modificando o modelo de partida, para se tornarem autênticas por sua vez na medida em que elas aplicavam o princípio do tai-chi. De certa maneira poderia dizer que todas as formas de tai-chi são autênticas, na medida em que elas foram modificadas respeitando o princípio do tai-chi.
Porque o princípio do tai-chi se encontra vivo, portanto móvel e dinâmico. Apesar do espírito ocidental se reclamar um modelo de “liberdade” e de “racionalidade” parece-me que muitas vezes se encontra aprisionado num sistema rígido de regras entorpecidas.
Muitas pessoas praticam o tai-chi-chuan colocando a importância sob a forma de um modelo normalizado ou sob regras técnicas. Bem poucos praticam interessando-se no princípio que constitui o próprio fundamento da técnica. Os primeiros ficarão satisfeitos por um certa conformidade ao sistema da escola que escolheram, os segundos à compreensão da multiplicidade de possibilidades técnicas aferentes a um princípio.
Aqueles que se prendem à importância de uma carapaça técnica interessam-se pelas regras, e aqueles que procuram o essencial ligam-se ao princípio que é a origem da criação.
Autor: Kenji Tokitsu
Tradução para Português: Luís Silva Carvalho